Biochar quimicamente ativado: um inusitado material para o desenvolvimento de sensores eletroquímicos

Em nosso dia a dia nos deparamos frequentemente com informações sobre a composição de diversas coisas. É muito comum recorrer a exames laboratoriais para verificar, por exemplo, os níveis de glicose, colesterol, ureia e ácido úrico presentes em amostras de sangue ou urina. Essas análises, muitas vezes, levam ao diagnóstico de alguma condição que permite aos profissionais de saúde a escolha de abordagens de tratamento. Informações associadas à composição química de amostras são de grande importância para uma infinidade de decisões nas mais distintas áreas, como de alimentos, no controle de qualidade de produtos comerciais, no meio ambiente, em processos industriais, entre outros (Figura 1).

Figura 1. Análises Químicas e correlações com diferentes áreas

Muitas dessas amostras são analisadas empregando procedimentos laboratoriais que, frequentemente, demandam estratégias laboriosas e demoradas, além de equipamentos e insumos de elevado custo. Uma alternativa aos procedimentos convencionais para determinação de diversos compostos químicos é o uso de sensores químicos. Quando comparados, sensores químicos são dispositivos mais baratos que fornecem respostas mais rápidas, podem ser portáteis e empregados diretamente nas amostras a serem analisadas. Em linhas gerais, a estrutura básica de um sensor químico é esquematizada na Figura 2.

Figura 2. Componentes básicos de um sensor químico.

O dispositivo possui um elemento ou sítio de reconhecimento “molecular” que identifica e interage com a espécie de interesse (analito) mesmo na presença de outros compostos químicos presentes (concomitantes). Essa interação promove alguma variação, como, por exemplo, emissão/absorção de luz, variação de massa, emissão/absorção de calor, transferência de elétrons, entre outros fenômenos. A partir da variação de alguma dessas propriedades é possível adotar uma estratégia para fazer a transdução da interação entre o analito e o sítio de reconhecimento em uma forma de sinal mensurável. É comum associar a transdução da interação analito-sítio de reconhecimento ao termo “sensor”. Assim, sensores eletroquímicos são dispositivos cuja propriedade medida está associada a alguma grandeza elétrica (carga, corrente, potencial, entre outras)1,2. O exemplo de sensor eletroquímico mais comum no nosso cotidiano é o glicosímetro comercial, vendido em farmácias e utilizado para o monitoramento de glicose em pessoas com diabetes. Além da glicose, sensores eletroquímicos vêm sendo desenvolvidos para a determinação de outras espécies de interesse (analitos), como o colesterol e outras biomoléculas que podem ser relacionadas a distúrbios no organismo ou alguma doença. Para fins ambientais, esses dispositivos podem ser utilizados para a detecção de contaminantes, como metais tóxicos, pesticidas e fármacos em rios e mares.

É importante ressaltar que, para se construir um dispositivo comercial como o glicosímetro que todos conhecemos hoje, muitas pesquisas foram conduzidas no meio acadêmico. Além disso, mesmo já existindo um dispositivo comercial, diversos aspectos podem ser melhorados possibilitando o desenvolvimento de novos sensores com respostas mais rápidas, estáveis, sensíveis e com um custo agregado muito menor que dos outros já existentes no mercado. Isso demonstra a importância da pesquisa de novos materiais para a preparação de sensores eletroquímicos, pois, além do desempenho, o custo final está diretamente relacionado aos tipos de materiais utilizados na sua construção. Dentro deste contexto, um grande esforço é dedicado à busca de novos sítios de reconhecimento e abordagens que melhorem a transdução do sinal visando melhorar a seletividade e sensibilidade na resposta dos sensores, respectivamente. Normalmente, são empregados metais nobres (ex: ouro, platina e prata) e/ou materiais condutores a base de carbono (ex: grafite e/ou grafeno). Assim, a busca por materiais alternativos que possam apresentar um bom desempenho e tornar a construção de sensores mais simples e barata é uma realidade e uma demanda de muitos profissionais.

O biochar é um material carbonáceo, sustentável e de baixo custo, que vem se destacando nos últimos anos, principalmente para fins agrícolas. O termo biochar é a união das palavras em inglês biomass (biomassa) e charcoal (carvão), e identifica um biocarvão obtido pela pirólise (queima) de biomassa de origem animal ou vegetal, em baixas quantidades ou ausência de oxigênio. O processo de obtenção é semelhante ao utilizado para a produção de carvão vegetal. Inicialmente, o biochar foi produzido para aplicações em remediação de solo, fertilizante ou no sequestro de carbono3. Em alguns casos, como após a adsorção de contaminantes contendo nitrogênio e fósforo (NP), o biochar pode ser reutilizado como fertilizante, promovendo a melhora do solo e dando continuidade ao seu ciclo de produção e aplicação (Figura 3). A aplicação de biochar em solos surgiu a partir de estudos realizados em solo amazônico altamente fértil e escuro, conhecido como “Terra Preta de Índios”. A partir dos anos 2000, pesquisadores começaram a investigar a produção de um material similar a essas “Terras”, o que deu origem ao biochar4.

Figura 3. Ciclo de produção e aplicação do biochar.(Fonte: Adaptado de Tan et al.5).

Esse material apresenta um grande apelo ambiental, por ser sustentável e também econômico, podendo ser produzido, de forma simples, a partir de resíduos industriais e agrícolas. Assim, é possível a reutilização de resíduos para a produção de um novo material, com novas propriedades e aplicações. Uma matéria-prima promissora para a preparação de biocarvão é o farelo de mamona, que é um resíduo industrial proveniente de indústrias de fabricação de óleo de mamona e biodiesel. Isso torna o biochar um material interessante para a construção de sensores eletroquímicos, tanto do ponto de vista ambiental, quanto econômico. O aspecto do material é um pó escuro e com granulometria fina, que apresenta uma superfície com poros e grupos funcionais (grupos de espécies químicas). Essas características permitem que outras espécies de interesse possam ser retidas em sua superfície. Conforme pode ser visto na Figura 4, isso pode ocorrer de diferentes maneiras dependendo do tipo de analito como, por exemplo, íons metálicos (inorgânicos) e pesticidas (orgânicos), pelo preenchimento de poros por adsorção física ou por reação química com os grupos funcionais do biochar.

Figura 4. Mecanismos de interação do biochar com compostos inorgânicos e orgânicos.

Para melhorar as habilidades de interação com espécies de interesse, é possível aumentar o número de poros ou inserir mais grupos funcionais na superfície do biochar. Diferentes tipos de tratamentos químicos usando soluções ácidas ou básicas podem ser empregados. Recentemente, diversos trabalhos reportados na literatura descrevem resultados promissores no uso de biochar, obtidos de diferentes matérias-primas e preparados em diferentes condições, para a construção de sensores eletroquímicos. As perspectivas que surgem apontam para um material que pode ser obtido de fontes renováveis de forma simples e empregado com sucesso na construção de sensores eletroquímicos. Nos próximos anos, a busca por novas matérias-primas para obtenção de novos biocarvões, estabelecimento de condições para sua preparação, e combinação com outros materiais irá impulsionar as pesquisas relacionadas ao uso de biochar e sensores eletroquímicos.

Texto elaborado por Márcio F. Bergamini e Cristiane Kalinke.

Cristiane Kalinke.

Links Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9238023806889482 (Cristiane Kalinke) e http://lattes.cnpq.br/6463780458075153 (Márcio F. Bergamini).

 

Link da matéria publicada no site da UFPR: https://www.ufpr.br/portalufpr/noticias/tese-da-ufpr-premiada-pela-capes-utiliza-biochar-para-desenvolver-sensores-eletroquimicos-sustentaveis-e-baratos/

Material Suplementar

Esse texto foi escrito a convite do blog em razão do reconhecimento da tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Química da UFPR intitulada “Biochar quimicamente ativado: obtenção, caracterização e aplicação no desenvolvimento de sensores eletroquímicos” no Prêmio Capes de Teses 2020. O Prêmio Capes reconhece as melhores teses de cada uma das 49 áreas do conhecimento, e a tese mencionada foi premiada na área de Química. Nesse trabalho, foi utilizado biochar obtido a partir de farelo de mamona e tratado com ácido nítrico para o desenvolvimento de diversos sensores eletroquímicos. A construção dos dispositivos foi realizada de maneira bastante simples e de baixo custo, utilizando uma pasta de carbono preparada com óleo mineral, grafite e biochar. A função do óleo mineral foi de aglutinar e juntar todos os componentes formando uma pasta; o grafite foi utilizado por ser um material condutor de baixo custo; e o biochar foi usado para promover a captura de espécies em solução, como já mencionado. As medidas envolvendo esses sensores consistem, basicamente, em duas etapas: 1. “Captura” da espécie de interesse na superfície do sensor e 2. Detecção da quantidade (concentração) de espécie, a partir do monitoramento das reações de oxidação e redução destas espécies. Seguindo esta metodologia, o sensor foi aplicado na resolução de cinco problemas diferentes, conforme exemplificado na Figura 5 e descritos a seguir:

  1. Determinação de níquel em amostras de bioetanol e água residuária6;
  2. Determinação de ácido cafeico em diferentes tipos de vinho7;
  3. Determinação não-enzimática de glicose utilizando um sistema microfluídico a base de fios de algodão8;
  4. Determinação enzimática de glicose em amostras de soro sanguíneo, utilizando azul da Prússia como mediador redox;
  5. Distinção e detecção de três compostos fenólicos, utilizando uma língua eletrônica voltamétrica9.

A aplicação de biochar tratado como modificador de eletrodos foi eficaz no monitoramento das espécies citadas anteriormente, apresentando baixo custo e simplicidade, além de ser um dispositivo ambientalmente amigável, uma vez que se utilizam resíduos industriais na síntese do material. Os sensores desenvolvidos apresentaram excelentes resultados para a determinação de diferentes espécies em diversos tipos de amostras, demonstrando a enorme versatilidade do material avaliado e criando novas oportunidades na busca pelo desenvolvimento de materiais e dispositivos mais sustentáveis.

Figura 5. Etapas de obtenção, caracterização e aplicação de biochar no desenvolvimento de sensores eletroquímicos para a detecção de diferentes espécies.

Referências:

  1. J. Janata. Principles of Chemical Sensors, Second Edition. Springer, New York, 2009.
  2. A. Hulanicki, et al. Chemical Sensors Definitions and Classification. Pure & Applied Chem., 63(9) (1991) 1247-1250.
  3. J. Lehmann, et al. Biochar effects on soil biota–a review, Soil Biology and Biochemistry, 43(9) (2011) 1812-1836.
  4. A.S. Mangrich, et al. Biocarvão: as terras pretas de índios e o sequestro de carbono, Revista Ciência Hoje, 47 (2011) 47-52.
  5. X. Tan, et al. Application of biochar for the removal of pollutants from aqueous solutions, Chemosphere, 125 (2015) 70-85.
  6. C. Kalinke, et al. Activated biochar: Preparation, characterization and electroanalytical application in an alternative strategy of nickel determination, Analytica Chimica Acta, 983 (2017) 103-111.
  7. C. Kalinke, et al. Simple and low-cost sensor based on activated biochar for the voltammetric stripping detection of caffeic acid, Microchemical Journal, 31(5) (2020) 941-952.
  8. C. Kalinke, et al. Green method for glucose determination using microfluidic device with a non-enzymatic sensor based on nickel oxyhydroxide supported at activated biochar, Talanta, 200 (2019) 518-525.
  9. C. Kalinke, et al. Voltammetric electronic tongue based on carbon paste electrodes modified with biochar for phenolic compounds stripping detection, Electroanalysis, 31 (2019) 2238-2245.

 

Diagnóstico da COVID-19. Quais os principais testes disponíveis? Como interpretá-los?

Diagnóstico da COVID-19. Quais os principais testes disponíveis? Como interpretá-los?

A COVID-19, doença que impôs uma nova realidade a milhões de pessoas pelo mundo, assusta não só pela velocidade de contágio, mas também pelo elevado número de óbitos contabilizados até o momento. Diante da pandemia, uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a testagem da população em larga escala. O diagnóstico preciso e precoce da doença desempenha um papel decisivo na tomada de decisões pelos profissionais da saúde, garantindo o tratamento adequado e o isolamento das pessoas infectadas, e retardando ou, até mesmo, impedindo a propagação do vírus. Atualmente há um número substancial de testes para o diagnóstico da COVID-19, os quais são divididos em duas grandes classes: os testes moleculares e os sorológicos.

Até o momento, a reação em cadeia da polimerase (RT-PCR, do inglês reverse-transcriptase polymerase chain reaction) tem sido empregada como principal teste molecular para diagnóstico da COVID-19, sendo classificada como padrão ouro segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).1 Neste teste, a partir de uma amostra obtida pela inserção de um cotonete na cavidade nasal do indivíduo, é feita a replicação (cópias) do material genético presente na secreção coletada, permitindo a detecção do vírus SARS-CoV-2.

Os kits de diagnóstico baseados em PCR disponíveis no mercado são altamente específicos e sensíveis. Isso quer dizer que detectam precisamente o vírus em baixas quantidades, mas possuem limitações relevantes como o tempo de resposta, que pode variar de 24 a 72 horas.2 Devido à alta carga de trabalho dos analistas e à escassez de reagentes durante o estágio epidêmico, os testes de PCR são realizados, principalmente, em pacientes com sintomas agudos da COVID-19.3 No entanto, é sabido que uma fração significativa de indivíduos infectados permanece assintomática (não apresenta sintomas evidentes) e constitui um risco de disseminar a infecção, dada a natureza altamente contagiosa do vírus.4

Em outra vertente, quando uma pessoa é infectada pelo SARS-CoV-2, vírus da COVID-19, seu sistema imunológico reconhece o invasor como um corpo estranho e desencadeia uma resposta que terá como resultado a produção de anticorpos, as chamadas imunoglobulinas (Igs). Existem vários tipos de Igs, dentre elas a IgM, a IgA e a IgG. Logo após a infecção, há um período chamado de janela imunológica, que consiste no tempo que o organismo leva para produzir anticorpos específicos, indo de poucos dias a semanas. Estudos mostram que a IgA, e mais comumente a IgM, geralmente são produzidas de 5 a 8 dias após a infecção 5–7 fornecendo as primeiras linhas de defesa, indicando exposição recente ao SARS-CoV-2. Em seguida, respostas adaptativas caracterizadas pela presença de IgG, que geralmente são produzidas 10 a 15 dias após a infecção, 5–7 são responsáveis pela memória imunológica e “imunidade de longo prazo”, indicando que a exposição ao vírus ocorreu há algum tempo. Portanto, quando se fala em testes que detectam anticorpos (os testes sorológicos ou os famosos testes rápidos), a interpretação do resultado obtido deve ser feita conforme demonstrado no quadro abaixo:

Interpretação dos testes rápidos (sorológicos)*

*Alguns testes utilizam IgA ao invés de IgM, outros empregam ambas (IgA e IgM). Nestes dois casos, a interpretação deve ser feita de maneira semelhante à demonstrada no quadro.

É importante mencionar que, apesar dos anticorpos (IgG) permanecerem no organismo após a infecção, ainda não há comprovação científica de que o indivíduo adquiriu imunização permanente, ou seja, até o momento não se tem certeza sobre a possibilidade de reinfecção pelo SARS-CoV-2.

Independentemente da doença se manifestar de forma grave, leve ou assintomática, a presença de anticorpos indica que uma pessoa foi infectada pelo vírus SARS-CoV-2. Além disso, devido à simplicidade, rapidez e custo reduzido em comparação aos ensaios moleculares, os testes sorológicos são mais factíveis de serem explorados com finalidade de testagem em massa da população.2 Porém, apesar de práticos, tais testes apresentam precisão questionável, sendo relatado, por exemplo, um percentual considerável de falsos negativos (quando o teste informa que o indivíduo não tem a doença, quando na verdade tem). Com o propósito de traçarmos um perfil de resposta para ambos os testes, no quadro abaixo estão inseridas as principais vantagens e desvantagens de cada um.

Análise comparativa entre RT-PCR e teste sorológico

Como observado, o teste RT-PCR é mais demorado, pois, além da etapa de transporte da amostra para um laboratório apropriado, a análise em si dispende tempo considerável. Como o teste RT-PCR reconhece o vírus, se a pessoa já foi curada o resultado será negativo, o que dificulta a identificação de pessoas que já se curaram da doença, visto que não possuem mais o vírus no organismo. Por sua vez, o teste sorológico não é efetivo no início da infecção, que pode compreender a fase aguda e sintomática da doença, pois é preciso esperar a janela imunológica. Neste contexto, fica evidente que ambos os testes são fundamentalmente importantes e atuam de forma complementar para um diagnóstico mais efetivo da COVID-19.

 

Pelo Prof. Dr. Dênio Emanuel Pires Souto – Departamento de Química/UFPR

Link site do grupo de pesquisa: https://laesbufpr.blogspot.com/

Link currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0601403644789424

 

Referências

  1. Mahapatra, S. & Chandra, P. Clinically practiced and commercially viable nanobio engineered analytical methods for COVID-19 diagnosis. Biosens. Bioelectron. 165, 112361 (2020).
  2. Green, K., Graziadio, S., Turner, P., Fanshawe, T. & Allen, J. Molecular and antibody point-of-care tests to support the screening, diagnosis and monitoring of COVID-19. www.cebm.net/oxford-covid-19/ (2020).
  3. Seo, G. et al. Rapid Detection of COVID-19 Causative Virus (SARS-CoV-2) in Human Nasopharyngeal Swab Specimens Using Field-Effect Transistor-Based Biosensor. ACS Nano (2020) doi:10.1021/acsnano.0c02823.
  4. Ai, T. et al. Correlation of Chest CT and RT-PCR Testing in Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in China: A Report of 1014 Cases. Radiology 200642 (2020) doi:10.1148/radiol.2020200642.
  5. Cui, F. & Zhou, H. S. Diagnostic methods and potential portable biosensors for coronavirus disease 2019. Biosens. Bioelectron. 165, 112349 (2020).
  6. Li, C. et al. Laboratory diagnosis of coronavirus disease-2019 (COVID-19). Clinica Chimica Acta vol. 510 35–46 (2020).
  7. Ravi, N., Lee Cortade, D., Ng, E. & Wang, S. X. Diagnostics for SARS-CoV-2 detection: A comprehensive review of the FDA-EUA COVID-19 testing landscape. Biosens. Bioelectron. 165, 112454 (2020).