A química da água sanitária
Em tempos de pandemia a falta de conhecimento se torna mortal. Ainda há um número grande de pessoas que acha que a ignorância é uma virtude. Não é! Esta foi uma lição aprendida pela humanidade desde a peste negra durante o século XIV. No século XXI, apesar dos vários avanços das ciências Naturais (Biologia, Física, Química) e Matemática, alguns insistem em colocar em dúvida o conhecimento. Isto não é um bom presságio.
Devido a epidemia COVID-19, se faz necessário um cuidado intensivo com a higiene pessoal, uma vez que este vírus pode permanecer no ar em suspensão, na forma de micro gotas de saliva ou qualquer outra secreção. Usar álcool em gel, hipoclorito de sódio (água sanitária), lavar as mãos com sabão por longo tempo, são algumas das medidas que certamente nos protegem.
Neste artigo iremos explorar, do ponto de vista químico, apenas o hipoclorito de sódio como agente de higienização. Mas antes algumas definições são necessárias:
- Limpeza – Um objeto limpo é aquele que não apresenta sinais de sujeira quando examinado a olho nu.
- Desinfecção – Qualquer processo que elimina a maior parte ou todos os agentes patogênicos exceto esporos de bactérias na superfície de objetos inanimados (estes esporos precisam de outros meios para ser eliminados).
- Esterilização – É um processo que destrói /elimina todas as formas de vida microbiana. Este processo é feito em instalações especiais usando métodos físicos e químicos. Vapor superaquecido, calor seco, óxido de etileno (C2H4O), plasma gasoso com peróxido de hidrogênio são os principais agentes de esterilização usados em hospitais.
Segundo as definições acima, o hipoclorito de sódio (NaOCl) é um agente de desinfecção.
Por volta de 1785 o químico francês Claude Louis Berthollet fabricou em seu laboratório a primeira solução de branqueamento ao passar cloro gasoso em uma solução contendo carbonato de sódio (Na2CO3). Seu laboratório em Paris ficava no “quay Javel” (quarteirão Javel), perto do rio Sena e por muito tempo esta solução foi conhecida como “Eau de Javel” ou Água de Javel. No Brasil é conhecida como Água Sanitária.
Atualmente a hipoclorito de sódio é fabricado de duas maneiras, principalmente:
- A partir da eletrólise de uma solução de cloreto de sódio onde é produzido cloro gasoso e hidróxido de sódio (NaOH).
- Passando um fluxo de cloro gasoso em uma solução concentrada de NaOH.
A solução de hipoclorito de sódio é levemente amarelo-esverdeada e com cheiro característico. Um litro desta solução com uma concentração de 5,5% (m/m), ou seja, 55 gramas de NaOCl em 1000 gramas de água possui uma densidade de 1,1 g/L. Soluções mais concentradas na ordem de 15-18% são perigosas para serem manipuladas e tem seu uso restrito. No Brasil são vendidas comercialmente soluções com concentrações entre 1,8 até 6%. Marcas diferentes usam concentrações diferentes!
A solução de hipoclorito de sódio está em um equilíbrio químico (mais uma das ideias de Bertholet) onde o NaOCl lentamente se decompõe formando cloro gasoso. Cerca de 0,75 g de cloro gasoso é perdido diariamente destas soluções e esta velocidade depende da temperatura ambiente. As equações abaixo descrevem estes processos (Quadro 1):
Quadro 1. Equações que representam algumas das reações que ocorrem em uma solução de hipoclorito de sódio.
Neste quadro estão representadas as espécies principais que existem em meio aquoso. A equação 1 representa a reação entre o gás cloro Cl2 com o hidróxido de sódio (soda cáustica) dissolvido em água. O equilíbrio tende a se deslocar para a direita, ou seja, para a formação do ácido hipocloroso (HOCl), como produto. Como o ácido hipocloroso é um ácido fraco o equilíbrio representado pela equação 2 se estabelece rapidamente, formando íons de Na+ e ClO– solvatados por moléculas de água (Quadro 2).
Quadro 2. Representação ilustrando a solvatação de íons sódio e hipoclorito em água
A equação 3 representa o equilíbrio de formação do cloro gasoso dissolvido em água. Por último (equação 4), o equilíbrio que explica a perda de cloro gasoso com a respectiva diminuição da capacidade de desinfecção da água sanitária. Por isto atenção: quando você larga uma garrafa de água sanitária aberta, além de perder a atividade, você respira o cloro gasoso (Cl2) que foi liberado!
Mas, e o que isto tudo tem a haver com o corona vírus? Este vírus pode ser descrito de uma maneira muito simples como uma fita de ácido ribonucleico (RNA em inglês) envolto por uma membrana de gordura (camada lipídica). Não é um ser vivo, pois não possui a capacidade de se multiplicar ou de se “alimentar”. No entanto, ao encontrar uma célula adequada ele injeta seu RNA e captura a máquina reprodutiva celular. Esta célula, agora seguindo as instruções contidas no RNA do vírus, começa a fabricar mais vírus. Cada célula sadia produz cerca de 500 vírus antes de morrer. Bem, como tudo isto se dá dentro do nosso organismo uma das poucas coisas que podemos fazer é evitar o contágio! Distanciamento social é uma medida, a outra é a higiene. Mas como funciona o hipoclorito de sódio como agente de desinfecção?
No quadro acima, vimos os principais equilíbrios que explicam a formação e a degradação (perda de atividade) de uma solução de hipoclorito de sódio. Por outro lado, mostra a formação do ácido hipocloroso e de cloro, ambos fortes agentes de oxidação. O cloro reage com compostos nitrogenados formando cloro aminas. O RNA contém uma série de aminoácidos, que são compostos contendo nitrogênio em sua estrutura. O ácido hipocloroso e o hipoclorito de sódio são capazes de oxidar álcoois ou aldeídos a ácidos carboxílicos, tornando-os mais solúveis em água. Devido ao pH destas soluções (em torno de 11) uma parte da membrana externa (gordura) pode ser destruída inativando o vírus ou simplesmente destruindo a membrana celular das bactérias tornando assim o processo de desinfecção eficiente.
Conclusão.
Até 1875 a humanidade não conhecia o hipoclorito de sódio. Hoje, 145 anos depois, conhecemos muito sobre as propriedades e usos deste composto químico. Um produto certamente simples, cujo uso pode salvar vidas. É isto que faz a Ciência!
Prof Dr. Alfredo Marques
http://lattes.cnpq.br/6066972937617393
http://www.quimica.ufpr.br/paginas/departamento/docentes/#A