Recentemente, ficamos chocados com as impressionantes imagens da enorme explosão (Figura ao lado) ocorrida no dia 04 de agosto na zona portuária da cidade de Beirute no Líbano, que até este momento causou quase 200 mortes, mais de 6 mil feridos e inúmeros desabrigados (A tragédia causou grande comoção mundial, em particular no Brasil, que abriga a maior comunidade libanesa fora daquele país (cerca de 10 milhões de imigrantes e descendentes).
As imagens da explosão são intrigantes e impressionantes, se é que se pode usar tais adjetivos diante de tamanha tragédia humana. A sequência de explosões no cais do porto, que levou à formação de nuvens brancas em forma de cogumelo, foi incessantemente noticiada por diversas mídias. À “fumaça branca”, como descrita pelos narradores do evento, seguiu-se uma enorme nuvem de cor marrom avermelhada. Essa sequência de fatos deixou-nos, no mínimo, embasbacados e chocados com tamanha manifestação de força das reações químicas envolvidas.
Muitas reportagens noticiaram que a explosão foi causada pelo material “nitrato de amônia” ou mesmo “amônia”. Na realidade, de acordo com as informações oficiais, a provável causa da explosão foi a decomposição térmica do sal, denominado nitrato de amônio, que contém o ânion nitrato (NO3–) e o cátion amônio (NH4+) – ver figura 2. De acordo com as autoridades libanesas, estavam armazenadas desde 2014 no cais do porto mais de 2800 toneladas deste sal, o que corresponde à extraordinária quantidade de matéria de 35 milhões de mol (saiba mais). Tal tragédia nos deixa curiosos sobre esse sal (nitrato de amônio) e os motivos pelos quais ele parece ser o causador de tanta destruição e da perda de tantas vidas, deixando o país em luto.
O nitrato de amônio
Na natureza, o nitrato de amônio ocorre na forma de um sal duplo de amônio e potássio chamado de Gwihabaita. No entanto, todo o nitrato de amônio consumido no mundo é sintetizado pela reação ácido-base entre ácido nítrico concentrado (HNO3) e gás amônia (NH3), de acordo com a equação química 1:
HNO3(aq) + NH3(g) → NH4NO3(aq) (1)
São produzidos anualmente cerca de 22 milhões de toneladas de nitrato de amônio. Desse total, 80% são empregados como fertilizante e 20% em explosivos, estes últimos utilizados na mineração ou construção civil. O nitrato de amônio atua como fertilizante devido ao fato de conter na sua fórmula 35% de nitrogênio, elemento essencial presente nas bases nitrogenadas e aminoácidos, constituintes do DNA e proteínas respectivamente,[1] vitais para o desenvolvimento das plantas.
O sal NH4NO3 forma cristais incolores de brilho lustroso, solúveis em água, não voláteis, não inflamáveis e estáveis à temperatura ambiente.[2] No entanto, é um forte agente oxidante, sendo necessários cuidados no seu manuseio e armazenamento. Em ambiente confinado e na presença de uma fonte de detonação, o NH4NO3 é propenso a explosão. Por esse motivo, já ocorreram diversos acidentes com explosões e incêndios envolvendo este sal (saiba mais).
A 170°C, o NH4NO3 sofre fusão seguida de decomposição.[3] No entanto, a decomposição também pode ocorrer em temperaturas próximas a 50 °C na presença de impurezas como a pirita (dissulfeto de ferro, FeS2),[4] o que eleva o risco de acidentes, mesmo em temperaturas baixas. Os relatos do acidente no porto de Beirute indicaram pequenas explosões, causadas por motivos desconhecidos, que precederam a explosão maior. Essas pequenas explosões podem ter atuado como detonadores que resultaram na grande tragédia.
Do ponto de vista termoquímico, o NH4NO3 decompõe-se inicialmente por uma reação exotérmica (reação que libera energia na forma de calor, representado pelo valor negativo de ΔH), produzindo três mols de espécies químicas na forma gasosa por mol de sal sólido, como mostrado na equação química 2. Estes produtos são o vapor de água e o óxido nitroso (N2O, o gás hilariante que é usado como anestésico):
NH4NO3(s) → N2O(g) + 2 H2O(g) (2)
ΔH = −36 kJ∙mol−1
Além desta, outras reações de decomposição ocorrem entre 170 oC e 280 oC, liberando rapidamente gases e grande quantidade de calor, representadas pelas equações químicas 3 e 4:
3) NH4NO3(s) → ½ N2(g) + NO(g) + 2 H2O(g) (3)
ΔH = −2597 kJ∙mol-1
NH4NO3(s) → ¾ N2(g) + ½ NO2(g) + 2 H2O(g) (4)
ΔH = −944 kJ∙mol-1
Devido à sequência de reações exotérmicas e consequente liberação de calor, outras reações de decomposição também ocorrem (equações químicas 5 e 6):
2 NH4NO3(s) → 2 N2(g) + O2(g) + 4 H2O(g) (5)
ΔH = −1057 kJ∙mol-1
8 NH4NO3(s) → 5 N2(g) + 4 NO(g) + 2 NO2(g) + 16 H2O(g) (6)
ΔH = −600 kJ∙mol-1
Parte do calor liberado pela sequência de reações exotérmicas (equações químicas 2 a 6) é absorvido pelo processo de decomposição do sal de NH4NO3 fundido, o qual produz vapores de amônia e ácido nítrico. Esse processo endotérmico é representado na equação química 7, na qual se destaca o valor positivo de ΔH.
NH4NO3(l) → HNO3(g) + NH3(g) (7)
ΔH = 176 kJ∙mol-1
As equações 3, 4 e 6 mostram a formação de dióxido de nitrogênio (NO2) ou de monóxido de nitrogênio (NO). Este último é capaz de formar NO2 pela reação com oxigênio atmosférico. O NO2 é um gás de cor castanha, que provavelmente está associado à enorme nuvem marrom avermelhada visualizada na imagens da explosão em Beirute.
A equação química 5 explica porque o nitrato de amônio é um eficiente fornecedor de oxigênio para reações de combustão. Assim, na presença de materiais combustíveis, a decomposição do nitrato de amônio pode liberar ainda mais calor (
A sequência de reações ilustradas pelas equações químicas 1 a 7 explica como o nitrato de amônio foi capaz de desencadear a grande explosão na cidade de Beirute. Imaginem qual a consequência de todos esses gases, uns incolores (N2O, N2, O2, H2O, NO, HNO3 e NH3), outros coloridos como o NO2, sendo produzidos por reações que liberam grandes quantidades de calor, formando e expandindo a grande nuvem em forma de cogumelo? Estas reações químicas resultaram em um triste espetáculo para aquela cidade! Deve-se considerar também que, além dos danos causados pela explosão, a população provavelmente sofrerá as consequências da liberação desses gases, especialmente o NO2, devido à sua toxicidade, suas propriedades irritantes e à sua tendência de causar chuva ácida.
Do ponto de vista químico, com base nas equações acima expostas, esta foi uma tragédia que talvez pudesse ter sido evitada, caso fossem considerados os conhecimentos científicos que tratam deste sal e dos riscos associados à sua instabilidade térmica e potencial capacidade explosiva.
Referências
[1] G. Garcia, A. A. Cardoso, O. A. M. Santos, Da escassez ao estresse do planeta: um século de mudanças no ciclo do nitrogênio, Quim. Nova, 36(9) (2013) 1468-1476 (https://www.scielo.br/pdf/qn/v36n9/32.pdf).
[2] G. Marlair, M.-A. Kordek, Safety and security issues relating to low capacity storage of AN-based fertilizers, J. Hazard. Mater. 123(1–3) (2005) 13-28 (https://doi.org/10.1016/j.jhazmat.2005.03.028).
[3] A. M. Djerdjev, P. Priyananda, J. Gore, J. K. Beattie, C. Neto, B. S. Hawkett, The mechanism of the spontaneous detonation of ammonium nitrate in reactive grounds, J. Environmental Chem. Eng. 6(1) (2018) 281-288 (https://doi.org/10.1016/j.jece.2017.12.003)
[4] R. Gunawan, D. Zhang, Thermal stability and kinetics of decomposition of ammonium nitrate in the presence of pyrite, J. Hazard. Mater. 165 (2009) 751–758 (https://doi.org/10.1016/j.jhazmat.2008.10.054)
Por Profa. Dra. Shirley Nakagaki