Biochar quimicamente ativado: um inusitado material para o desenvolvimento de sensores eletroquímicos

Em nosso dia a dia nos deparamos frequentemente com informações sobre a composição de diversas coisas. É muito comum recorrer a exames laboratoriais para verificar, por exemplo, os níveis de glicose, colesterol, ureia e ácido úrico presentes em amostras de sangue ou urina. Essas análises, muitas vezes, levam ao diagnóstico de alguma condição que permite aos profissionais de saúde a escolha de abordagens de tratamento. Informações associadas à composição química de amostras são de grande importância para uma infinidade de decisões nas mais distintas áreas, como de alimentos, no controle de qualidade de produtos comerciais, no meio ambiente, em processos industriais, entre outros (Figura 1).

Figura 1. Análises Químicas e correlações com diferentes áreas

Muitas dessas amostras são analisadas empregando procedimentos laboratoriais que, frequentemente, demandam estratégias laboriosas e demoradas, além de equipamentos e insumos de elevado custo. Uma alternativa aos procedimentos convencionais para determinação de diversos compostos químicos é o uso de sensores químicos. Quando comparados, sensores químicos são dispositivos mais baratos que fornecem respostas mais rápidas, podem ser portáteis e empregados diretamente nas amostras a serem analisadas. Em linhas gerais, a estrutura básica de um sensor químico é esquematizada na Figura 2.

Figura 2. Componentes básicos de um sensor químico.

O dispositivo possui um elemento ou sítio de reconhecimento “molecular” que identifica e interage com a espécie de interesse (analito) mesmo na presença de outros compostos químicos presentes (concomitantes). Essa interação promove alguma variação, como, por exemplo, emissão/absorção de luz, variação de massa, emissão/absorção de calor, transferência de elétrons, entre outros fenômenos. A partir da variação de alguma dessas propriedades é possível adotar uma estratégia para fazer a transdução da interação entre o analito e o sítio de reconhecimento em uma forma de sinal mensurável. É comum associar a transdução da interação analito-sítio de reconhecimento ao termo “sensor”. Assim, sensores eletroquímicos são dispositivos cuja propriedade medida está associada a alguma grandeza elétrica (carga, corrente, potencial, entre outras)1,2. O exemplo de sensor eletroquímico mais comum no nosso cotidiano é o glicosímetro comercial, vendido em farmácias e utilizado para o monitoramento de glicose em pessoas com diabetes. Além da glicose, sensores eletroquímicos vêm sendo desenvolvidos para a determinação de outras espécies de interesse (analitos), como o colesterol e outras biomoléculas que podem ser relacionadas a distúrbios no organismo ou alguma doença. Para fins ambientais, esses dispositivos podem ser utilizados para a detecção de contaminantes, como metais tóxicos, pesticidas e fármacos em rios e mares.

É importante ressaltar que, para se construir um dispositivo comercial como o glicosímetro que todos conhecemos hoje, muitas pesquisas foram conduzidas no meio acadêmico. Além disso, mesmo já existindo um dispositivo comercial, diversos aspectos podem ser melhorados possibilitando o desenvolvimento de novos sensores com respostas mais rápidas, estáveis, sensíveis e com um custo agregado muito menor que dos outros já existentes no mercado. Isso demonstra a importância da pesquisa de novos materiais para a preparação de sensores eletroquímicos, pois, além do desempenho, o custo final está diretamente relacionado aos tipos de materiais utilizados na sua construção. Dentro deste contexto, um grande esforço é dedicado à busca de novos sítios de reconhecimento e abordagens que melhorem a transdução do sinal visando melhorar a seletividade e sensibilidade na resposta dos sensores, respectivamente. Normalmente, são empregados metais nobres (ex: ouro, platina e prata) e/ou materiais condutores a base de carbono (ex: grafite e/ou grafeno). Assim, a busca por materiais alternativos que possam apresentar um bom desempenho e tornar a construção de sensores mais simples e barata é uma realidade e uma demanda de muitos profissionais.

O biochar é um material carbonáceo, sustentável e de baixo custo, que vem se destacando nos últimos anos, principalmente para fins agrícolas. O termo biochar é a união das palavras em inglês biomass (biomassa) e charcoal (carvão), e identifica um biocarvão obtido pela pirólise (queima) de biomassa de origem animal ou vegetal, em baixas quantidades ou ausência de oxigênio. O processo de obtenção é semelhante ao utilizado para a produção de carvão vegetal. Inicialmente, o biochar foi produzido para aplicações em remediação de solo, fertilizante ou no sequestro de carbono3. Em alguns casos, como após a adsorção de contaminantes contendo nitrogênio e fósforo (NP), o biochar pode ser reutilizado como fertilizante, promovendo a melhora do solo e dando continuidade ao seu ciclo de produção e aplicação (Figura 3). A aplicação de biochar em solos surgiu a partir de estudos realizados em solo amazônico altamente fértil e escuro, conhecido como “Terra Preta de Índios”. A partir dos anos 2000, pesquisadores começaram a investigar a produção de um material similar a essas “Terras”, o que deu origem ao biochar4.

Figura 3. Ciclo de produção e aplicação do biochar.(Fonte: Adaptado de Tan et al.5).

Esse material apresenta um grande apelo ambiental, por ser sustentável e também econômico, podendo ser produzido, de forma simples, a partir de resíduos industriais e agrícolas. Assim, é possível a reutilização de resíduos para a produção de um novo material, com novas propriedades e aplicações. Uma matéria-prima promissora para a preparação de biocarvão é o farelo de mamona, que é um resíduo industrial proveniente de indústrias de fabricação de óleo de mamona e biodiesel. Isso torna o biochar um material interessante para a construção de sensores eletroquímicos, tanto do ponto de vista ambiental, quanto econômico. O aspecto do material é um pó escuro e com granulometria fina, que apresenta uma superfície com poros e grupos funcionais (grupos de espécies químicas). Essas características permitem que outras espécies de interesse possam ser retidas em sua superfície. Conforme pode ser visto na Figura 4, isso pode ocorrer de diferentes maneiras dependendo do tipo de analito como, por exemplo, íons metálicos (inorgânicos) e pesticidas (orgânicos), pelo preenchimento de poros por adsorção física ou por reação química com os grupos funcionais do biochar.

Figura 4. Mecanismos de interação do biochar com compostos inorgânicos e orgânicos.

Para melhorar as habilidades de interação com espécies de interesse, é possível aumentar o número de poros ou inserir mais grupos funcionais na superfície do biochar. Diferentes tipos de tratamentos químicos usando soluções ácidas ou básicas podem ser empregados. Recentemente, diversos trabalhos reportados na literatura descrevem resultados promissores no uso de biochar, obtidos de diferentes matérias-primas e preparados em diferentes condições, para a construção de sensores eletroquímicos. As perspectivas que surgem apontam para um material que pode ser obtido de fontes renováveis de forma simples e empregado com sucesso na construção de sensores eletroquímicos. Nos próximos anos, a busca por novas matérias-primas para obtenção de novos biocarvões, estabelecimento de condições para sua preparação, e combinação com outros materiais irá impulsionar as pesquisas relacionadas ao uso de biochar e sensores eletroquímicos.

Texto elaborado por Márcio F. Bergamini e Cristiane Kalinke.

Cristiane Kalinke.

Links Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9238023806889482 (Cristiane Kalinke) e http://lattes.cnpq.br/6463780458075153 (Márcio F. Bergamini).

 

Link da matéria publicada no site da UFPR: https://www.ufpr.br/portalufpr/noticias/tese-da-ufpr-premiada-pela-capes-utiliza-biochar-para-desenvolver-sensores-eletroquimicos-sustentaveis-e-baratos/

Material Suplementar

Esse texto foi escrito a convite do blog em razão do reconhecimento da tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Química da UFPR intitulada “Biochar quimicamente ativado: obtenção, caracterização e aplicação no desenvolvimento de sensores eletroquímicos” no Prêmio Capes de Teses 2020. O Prêmio Capes reconhece as melhores teses de cada uma das 49 áreas do conhecimento, e a tese mencionada foi premiada na área de Química. Nesse trabalho, foi utilizado biochar obtido a partir de farelo de mamona e tratado com ácido nítrico para o desenvolvimento de diversos sensores eletroquímicos. A construção dos dispositivos foi realizada de maneira bastante simples e de baixo custo, utilizando uma pasta de carbono preparada com óleo mineral, grafite e biochar. A função do óleo mineral foi de aglutinar e juntar todos os componentes formando uma pasta; o grafite foi utilizado por ser um material condutor de baixo custo; e o biochar foi usado para promover a captura de espécies em solução, como já mencionado. As medidas envolvendo esses sensores consistem, basicamente, em duas etapas: 1. “Captura” da espécie de interesse na superfície do sensor e 2. Detecção da quantidade (concentração) de espécie, a partir do monitoramento das reações de oxidação e redução destas espécies. Seguindo esta metodologia, o sensor foi aplicado na resolução de cinco problemas diferentes, conforme exemplificado na Figura 5 e descritos a seguir:

  1. Determinação de níquel em amostras de bioetanol e água residuária6;
  2. Determinação de ácido cafeico em diferentes tipos de vinho7;
  3. Determinação não-enzimática de glicose utilizando um sistema microfluídico a base de fios de algodão8;
  4. Determinação enzimática de glicose em amostras de soro sanguíneo, utilizando azul da Prússia como mediador redox;
  5. Distinção e detecção de três compostos fenólicos, utilizando uma língua eletrônica voltamétrica9.

A aplicação de biochar tratado como modificador de eletrodos foi eficaz no monitoramento das espécies citadas anteriormente, apresentando baixo custo e simplicidade, além de ser um dispositivo ambientalmente amigável, uma vez que se utilizam resíduos industriais na síntese do material. Os sensores desenvolvidos apresentaram excelentes resultados para a determinação de diferentes espécies em diversos tipos de amostras, demonstrando a enorme versatilidade do material avaliado e criando novas oportunidades na busca pelo desenvolvimento de materiais e dispositivos mais sustentáveis.

Figura 5. Etapas de obtenção, caracterização e aplicação de biochar no desenvolvimento de sensores eletroquímicos para a detecção de diferentes espécies.

Referências:

  1. J. Janata. Principles of Chemical Sensors, Second Edition. Springer, New York, 2009.
  2. A. Hulanicki, et al. Chemical Sensors Definitions and Classification. Pure & Applied Chem., 63(9) (1991) 1247-1250.
  3. J. Lehmann, et al. Biochar effects on soil biota–a review, Soil Biology and Biochemistry, 43(9) (2011) 1812-1836.
  4. A.S. Mangrich, et al. Biocarvão: as terras pretas de índios e o sequestro de carbono, Revista Ciência Hoje, 47 (2011) 47-52.
  5. X. Tan, et al. Application of biochar for the removal of pollutants from aqueous solutions, Chemosphere, 125 (2015) 70-85.
  6. C. Kalinke, et al. Activated biochar: Preparation, characterization and electroanalytical application in an alternative strategy of nickel determination, Analytica Chimica Acta, 983 (2017) 103-111.
  7. C. Kalinke, et al. Simple and low-cost sensor based on activated biochar for the voltammetric stripping detection of caffeic acid, Microchemical Journal, 31(5) (2020) 941-952.
  8. C. Kalinke, et al. Green method for glucose determination using microfluidic device with a non-enzymatic sensor based on nickel oxyhydroxide supported at activated biochar, Talanta, 200 (2019) 518-525.
  9. C. Kalinke, et al. Voltammetric electronic tongue based on carbon paste electrodes modified with biochar for phenolic compounds stripping detection, Electroanalysis, 31 (2019) 2238-2245.

 

Armas químicas: um perigo iminente

Aviso para agente químico neurotóxico

Guerra química: estamos seguros?  Estamos cercados por substâncias químicas produzidas em laboratórios ou isolados de fontes naturais. Há mais de 160 milhões de substâncias químicas registradas na base de dados do CAS (Chemical Abstracts Service),1 sendo cerca de 350 mil delas comerciais. Ainda que se almeje uma finalidade benéfica à humanidade para a maior parte dessas substâncias, existem vários produtos químicos extremamente perigosos.

Muitos produtos químicos podem desencadear dor e até alterar funções do sistema nervoso (neurotóxicos). Estes compostos podem estar presentes, por exemplo, na fumaça do churrasco ou em armas químicas. As armas químicas são conhecidas pelo seu grande poder de destruição: podem matar grandes populações num tempo muito curto e, comparativamente a uma guerra bélica, têm um custo menor (US$ 2000 / km2 para armas convencionais e US$ 600 para armas químicas).

O uso de armas químicas data de 1000 A.C. a partir do emprego de arsênio pelos chineses ou do envenenamento da água dos inimigos pelos gregos. Por anos, muitas civilizações do passado e países na configuração geopolítica atual vêm utilizando substâncias químicas como armas ou agentes de controle de distúrbios (por exemplo bromoacetato de etila como irritante sensorial pela polícia francesa em 1910). A guerra química tomou outra proporção quando os alemães empregaram cloro gasoso na Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial (1915). Estima-se que, no final da Primeira Guerra Mundial, mais de 1,3 milhão de vítimas e 100 mil mortes foram causadas por ataques químicos. Até então se empregava agentes irritantes, mas foi durante a Segunda Guerra Mundial que a maioria das armas químicas mais mortais – os agentes neurotóxicos – foi criada, destacando-se os agentes G (compostos desenvolvidos pelos alemães, sendo que G vem de German, que significa alemão/alemã em inglês). Na década de 1930, na busca por novos inseticidas, o alemão Gerhard Schrader acidentalmente sintetizou duas das armas químicas mais letais: Tabun e Sarin (Figura 1). Muito rapidamente, os militares alemães começaram a usar esses agentes como armas, inserindo-os em projéteis. No entanto, apesar desse arsenal nunca ter sido usado em ataques, ele se tornou uma ameaça iminente devido aos enormes estoques (cerca de 30.000 toneladas apenas de Tabun na Alemanha).

Após a Segunda Guerra Mundial, os agentes V (V de Venom, que significa veneno em inglês) – outra classe de agentes neurotóxicos – começaram a ser desenvolvidos. Inicialmente, o Reino Unido desenvolveu o agente VX, Figura 1 (1949), que foi amplamente produzido pelos EUA (1961). Na mesma época, a ex-União Soviética produziu outros agentes da classe V: os VX russos. Mais recentemente, entre os anos de 1970-1990, a Rússia desenvolveu os agentes A-Novichok, sobre o qual pairam muitas incertezas, mas que parecem estar entre os agentes neurotóxicos mais letais produzidos até agora. Desenvolvidos para serem indetectáveis e intratáveis (sem antídoto), sua produção fez parte de um programa ultrassecreto russo – FOLIANT. Nunca foram publicadas as estruturas químicas dessa classe de compostos, e existem apenas especulações quanto às suas identidades estruturais (Figura 1).

Figura 1 – Estruturas químicas de algumas armas químicas neurotóxicas.

Além das grandes guerras, infelizmente muitos outros episódios com armas químicas são conhecidos. O primeiro episódio de guerra confirmado em que houve ataque químico foi em 1984 pelos iraquianos contra tropas iranianas, usando Tabun. Mais recentemente, o uso de Sarin vem sendo confirmado na guerra civil da Síria (em diversos episódios desde 2013). Infelizmente, além dos objetivos de guerra, as armas químicas também têm sido amplamente utilizadas no terrorismo pelo seu baixo custo e alto poder de destruição. Em 1994 e 1995, por exemplo, houve dois ataques terroristas com Sarin no Japão, sendo o último numa estação de metrô que causou 12 mortes e milhares de feridos. Em 2017, o meio-irmão do ditador Kim Jong-Un da Coreia do Norte foi assassinado com o agente VX em um aeroporto internacional da Malásia. Já em 2018, houve uma tentativa de assassinato de um ex-espião russo e sua filha numa área residencial do Reino Unido, usando o controverso agente Novichok. Mais recentemente, em agosto de 2020, um político russo foi supostamente envenenado com Novichok na Sibéria.

Buscando a paz mundial, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPCW-Haia, Holanda), está comprometida com questões de segurança envolvendo armas químicas e, por isso, recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2013. A OPCW implementa uma convenção mundial – assinada pela maioria dos países, cobrindo 98% da população mundial (quatro países ainda não fazem parte: Angola, Egito, Coréia do Norte e Sudão do Norte) e atua na proibição do desenvolvimento, produção, armazenamento e uso de armas químicas, bem como na sua destruição. Atualmente, sob os cuidados da OPCW, 98% de todo o estoque declarado foi destruído. Além disso, a Organização também atua na assistência e proteção, nas inspeções e no desenvolvimento de estratégias de segurança química.

As inspeções são fundamentais para garantir que a convenção seja mantida. Elas ocorrem principalmente em bases militares e indústrias (com consentimento dos estados-membros), visto serem focos principais da produção de precursores, agentes potencialmente nocivos, e até de armas químicas. Além disso, as inspeções ocorrem em casos de ataques em regiões com tensões, bem como em casos envolvendo atividades terroristas/envenenamentos ou para confirmar os episódios e rastrear a origem das armas químicas usadas.

O Brasil, apesar de não ter produção nem estoques de armas químicas declaradas, sempre esteve envolvido em promover a segurança química, muito devido à sua forte indústria. Além disso, tem atuado na prevenção de emergências químicas como ataques terroristas. O Brasil foi um dos primeiros países a assinar a convenção da OPCW e inclusive teve um brasileiro como diretor geral dessa organização – José Mauricio Bustani – por duas gestões consecutivas (1997-2002). Muitas das iniciativas que levaram a OPCW a receber o prêmio Nobel da Paz se devem às ações conduzidas por Bustani.

Mas, afinal, como funcionam as armas químicas neurotóxicas e por que são tão temidas? Elas atuam inibindo a enzima acetilcolinesterase. Em consequência desta inibição, acumula-se uma substância chamada acetilcolina, um importante neurotransmissor, o que leva a uma estimulação excessiva do sistema nervoso. Isso pode levar a sintomas como dor abdominal, salivação excessiva, convulsões, tremores, taquicardia, hipertensão e até parada respiratória. Os sintomas por intoxicação com armas químicas começam quando a quantidade de enzima inibida está em cerca de 50% e pode levar à morte quando esse número chega a 90%. O agente VX, por exemplo, é conhecido pela sua alta toxicidade, sendo que a dose letal em contato com a pele de um ser humano de 70 kg é de 0,01 g (10 miligramas), o que corresponde a menos de uma gota do composto. Quando inalado, sua toxicidade é muito maior, com dose letal de apenas 0,0004 g, portanto 100 vezes menor do que na absorção através da pele. Ainda, muitos danos causados em longo prazo também são observados, mesmo com exposição a pequenas quantidades dessas substâncias. Existem alguns tratamentos e antídotos, que atuam de forma a reativar a enzima inibida e mitigar os sintomas. Infelizmente estes também apresentam efeitos colaterais e nem sempre são eficientes.

É curioso que a forma de atuação de armas químicas nos seres humanos é similar à atuação de agrotóxicos em insetos. Não por acaso, as armas químicas têm muito em comum com agrotóxicos, começando pela sua origem.

É fato! As armas químicas continuam sendo uma ameaça iminente nos dias atuais, não se restringindo apenas a regiões de tensão. Seu uso pode ocorrer até mesmo em regiões consideradas seguras, sem distúrbios políticos/civis preocupantes como, por exemplo, em episódios de envenenamento e ataques terroristas. Nesse sentido, a ciência é a maior aliada para promover a segurança química, inovando em procedimentos de neutralização e destruição mais seguros e eficientes. Por exemplo, quando uma ogiva contendo uma arma química é abandonada e localizada, graças à ciência hoje sabemos como garantir a sua eliminação com segurança, levando a resíduos não tóxicos. Um exemplo interessante de destruição destes compostos envolve nanomotores reutilizáveis que conseguem neutralizar um meio contaminado.

A ciência também tem mostrado como monitorar a presença desses compostos no meio ambiente, mesmo em quantidades muito pequenas, seja em centros urbanos ou de conflitos, e também em amostras humanas (sangue, saliva, etc.) a fim de confirmar ou alertar sobre ataques. Por exemplo, sensores na forma de tatuagens vêm sendo desenvolvidos. A ciência atua ainda no rastreamento de desastres químicos, desde os acidentais (por exemplo, em indústrias) até os terroristas. Hoje é possível rastrear a origem, o país, de onde uma substância química tóxica veio. Além disso, os tratamentos para intoxicação também são frutos de muita pesquisa científica. Existem inclusive géis e roupas que conseguem decompor os agentes tóxicos quando entram em contato com eles.

Certamente a Ciência trabalha em prol de promover a paz mundial. Por mais que pessoas mal intencionadas tenham desenvolvido as armas químicas, só a Ciência consegue combater esse perigo iminente.

Referências

1          https://www.cas.org/support/documentation/chemical-substances. Acessado em 14/10/2020.

 

Pela Profa. Dra. Elisa Souza Orth

Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0659633505350112

Diagnóstico da COVID-19. Quais os principais testes disponíveis? Como interpretá-los?

Diagnóstico da COVID-19. Quais os principais testes disponíveis? Como interpretá-los?

A COVID-19, doença que impôs uma nova realidade a milhões de pessoas pelo mundo, assusta não só pela velocidade de contágio, mas também pelo elevado número de óbitos contabilizados até o momento. Diante da pandemia, uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a testagem da população em larga escala. O diagnóstico preciso e precoce da doença desempenha um papel decisivo na tomada de decisões pelos profissionais da saúde, garantindo o tratamento adequado e o isolamento das pessoas infectadas, e retardando ou, até mesmo, impedindo a propagação do vírus. Atualmente há um número substancial de testes para o diagnóstico da COVID-19, os quais são divididos em duas grandes classes: os testes moleculares e os sorológicos.

Até o momento, a reação em cadeia da polimerase (RT-PCR, do inglês reverse-transcriptase polymerase chain reaction) tem sido empregada como principal teste molecular para diagnóstico da COVID-19, sendo classificada como padrão ouro segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).1 Neste teste, a partir de uma amostra obtida pela inserção de um cotonete na cavidade nasal do indivíduo, é feita a replicação (cópias) do material genético presente na secreção coletada, permitindo a detecção do vírus SARS-CoV-2.

Os kits de diagnóstico baseados em PCR disponíveis no mercado são altamente específicos e sensíveis. Isso quer dizer que detectam precisamente o vírus em baixas quantidades, mas possuem limitações relevantes como o tempo de resposta, que pode variar de 24 a 72 horas.2 Devido à alta carga de trabalho dos analistas e à escassez de reagentes durante o estágio epidêmico, os testes de PCR são realizados, principalmente, em pacientes com sintomas agudos da COVID-19.3 No entanto, é sabido que uma fração significativa de indivíduos infectados permanece assintomática (não apresenta sintomas evidentes) e constitui um risco de disseminar a infecção, dada a natureza altamente contagiosa do vírus.4

Em outra vertente, quando uma pessoa é infectada pelo SARS-CoV-2, vírus da COVID-19, seu sistema imunológico reconhece o invasor como um corpo estranho e desencadeia uma resposta que terá como resultado a produção de anticorpos, as chamadas imunoglobulinas (Igs). Existem vários tipos de Igs, dentre elas a IgM, a IgA e a IgG. Logo após a infecção, há um período chamado de janela imunológica, que consiste no tempo que o organismo leva para produzir anticorpos específicos, indo de poucos dias a semanas. Estudos mostram que a IgA, e mais comumente a IgM, geralmente são produzidas de 5 a 8 dias após a infecção 5–7 fornecendo as primeiras linhas de defesa, indicando exposição recente ao SARS-CoV-2. Em seguida, respostas adaptativas caracterizadas pela presença de IgG, que geralmente são produzidas 10 a 15 dias após a infecção, 5–7 são responsáveis pela memória imunológica e “imunidade de longo prazo”, indicando que a exposição ao vírus ocorreu há algum tempo. Portanto, quando se fala em testes que detectam anticorpos (os testes sorológicos ou os famosos testes rápidos), a interpretação do resultado obtido deve ser feita conforme demonstrado no quadro abaixo:

Interpretação dos testes rápidos (sorológicos)*

*Alguns testes utilizam IgA ao invés de IgM, outros empregam ambas (IgA e IgM). Nestes dois casos, a interpretação deve ser feita de maneira semelhante à demonstrada no quadro.

É importante mencionar que, apesar dos anticorpos (IgG) permanecerem no organismo após a infecção, ainda não há comprovação científica de que o indivíduo adquiriu imunização permanente, ou seja, até o momento não se tem certeza sobre a possibilidade de reinfecção pelo SARS-CoV-2.

Independentemente da doença se manifestar de forma grave, leve ou assintomática, a presença de anticorpos indica que uma pessoa foi infectada pelo vírus SARS-CoV-2. Além disso, devido à simplicidade, rapidez e custo reduzido em comparação aos ensaios moleculares, os testes sorológicos são mais factíveis de serem explorados com finalidade de testagem em massa da população.2 Porém, apesar de práticos, tais testes apresentam precisão questionável, sendo relatado, por exemplo, um percentual considerável de falsos negativos (quando o teste informa que o indivíduo não tem a doença, quando na verdade tem). Com o propósito de traçarmos um perfil de resposta para ambos os testes, no quadro abaixo estão inseridas as principais vantagens e desvantagens de cada um.

Análise comparativa entre RT-PCR e teste sorológico

Como observado, o teste RT-PCR é mais demorado, pois, além da etapa de transporte da amostra para um laboratório apropriado, a análise em si dispende tempo considerável. Como o teste RT-PCR reconhece o vírus, se a pessoa já foi curada o resultado será negativo, o que dificulta a identificação de pessoas que já se curaram da doença, visto que não possuem mais o vírus no organismo. Por sua vez, o teste sorológico não é efetivo no início da infecção, que pode compreender a fase aguda e sintomática da doença, pois é preciso esperar a janela imunológica. Neste contexto, fica evidente que ambos os testes são fundamentalmente importantes e atuam de forma complementar para um diagnóstico mais efetivo da COVID-19.

 

Pelo Prof. Dr. Dênio Emanuel Pires Souto – Departamento de Química/UFPR

Link site do grupo de pesquisa: https://laesbufpr.blogspot.com/

Link currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0601403644789424

 

Referências

  1. Mahapatra, S. & Chandra, P. Clinically practiced and commercially viable nanobio engineered analytical methods for COVID-19 diagnosis. Biosens. Bioelectron. 165, 112361 (2020).
  2. Green, K., Graziadio, S., Turner, P., Fanshawe, T. & Allen, J. Molecular and antibody point-of-care tests to support the screening, diagnosis and monitoring of COVID-19. www.cebm.net/oxford-covid-19/ (2020).
  3. Seo, G. et al. Rapid Detection of COVID-19 Causative Virus (SARS-CoV-2) in Human Nasopharyngeal Swab Specimens Using Field-Effect Transistor-Based Biosensor. ACS Nano (2020) doi:10.1021/acsnano.0c02823.
  4. Ai, T. et al. Correlation of Chest CT and RT-PCR Testing in Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in China: A Report of 1014 Cases. Radiology 200642 (2020) doi:10.1148/radiol.2020200642.
  5. Cui, F. & Zhou, H. S. Diagnostic methods and potential portable biosensors for coronavirus disease 2019. Biosens. Bioelectron. 165, 112349 (2020).
  6. Li, C. et al. Laboratory diagnosis of coronavirus disease-2019 (COVID-19). Clinica Chimica Acta vol. 510 35–46 (2020).
  7. Ravi, N., Lee Cortade, D., Ng, E. & Wang, S. X. Diagnostics for SARS-CoV-2 detection: A comprehensive review of the FDA-EUA COVID-19 testing landscape. Biosens. Bioelectron. 165, 112454 (2020).

 

 

O fantástico grande-pequeno mundo.

 

Pequeno no tamanho das coisas. Grande, majestoso, abrangente, admirável, pujante, nas oportunidades.

O século XX foi marcado por grandes revoluções científicas. De fato, o ser humano aprendeu mais sobre o universo, sobre a natureza e sobre si próprio nesse período de tempo do que em todo aquele que o precedeu, desde que a evolução possibilitou que a curiosidade passasse a ser parte das características do Homo sapiens, que culminou, inclusive, com o momento em que nossa espécie começou a dominar as outras, e, por conseguinte, ser soberana no planeta. Os conceitos da mecânica quântica e logo a seguir a teoria da relatividade causaram uma verdadeira revolução no conhecimento nos 20 primeiros anos do século XX, e a Nanociência e Nanotecnologia fizeram o mesmo nos últimos 20 anos.

A Nanociência e a Nanotecnologia são, respectivamente, a ciência e a tecnologia que têm como base a matéria em escala nanométrica. Os nomes são estranhos, mas o conceito é simples. Vamos primeiro entender o que é esse tal de Nano. Nano é um prefixo científico para algo muito, muito, muito pequeno. Tomando em conta a escala métrica de tamanho, o milímetro é 1000 vezes menor que o metro; o micrômetro é 1000 vezes menor que o milímetro; e o nanômetro é 1000 vezes menor que o micrômetro. Assim, algo que possui o tamanho de um nanômetro é 1 bilhão de vezes menor que 1 metro. Um nanômetro é a distância aproximada de somente 4 átomos enfileirados. Como foi dito antes, é algo pequeno mesmo.

Então, sabendo o que é o tal do nano, porque ele ficou famoso, a ponto de se arvorar a ser a comissão de frente da ciência e tecnologia, e criar uma nova revolução na maneira de enxergarmos o mundo? Precisamos entender um conceito básico da matéria, antes de nos aprofundarmos nesse ponto. Todo mundo se lembra: a matéria é tudo o que tem massa e ocupa lugar no espaço, ou seja, tudo o que existe. Quando a gente dá uma utilidade, uma função à matéria, ela passa a ser considerada um material. Um galho de árvore é matéria, até que seja retirado da árvore e usado com uma função específica, por exemplo, como pé de apoio em uma mesa. Pronto, demos uma função à matéria (galho), e ela se transformou num material (o pé da mesa).

No exemplo anterior, podemos fazer um pé de mesa com um galho de árvore, mas não podemos fazer um pé de mesa com as folhas das árvores. Isso porque a madeira possui uma propriedade de resistência mecânica, de rigidez, que possibilita seu uso como um pé de mesa – propriedade essa que a folha não tem. Por mais que tomemos uma folha grande, como a folha de uma bananeira, por exemplo, ela não tem resistência mecânica para suportar o peso de um tampo de uma mesa – mesmo se for um tampo feito de papel. Esse exemplo simples nos mostra uma relação muito importante: usar a matéria como um material, ou seja, usar a matéria para alguma função, depende da propriedade que a matéria possui. E a propriedade depende da composição química (quais átomos e moléculas que a compõe) e da estrutura química (como esses átomos e essas moléculas interagem uns com os outros para formar aquela matéria). As propriedades das coisas, que fazem com que sejam úteis, dependem da sua natureza química e estrutural.

Acontece que se descobriu que a matéria, quando está na escala nanométrica de tamanho, apresenta um comportamento bem diferente de quando ela está crescidinha, normal, da forma que a conhecemos. Ou seja, a propriedade da matéria na escala de tamanho dos nanômetros difere das propriedades da mesmíssima matéria em escala de tamanho convencional. Ou em outras palavras, as propriedades da matéria, que até então se achava que dependiam somente da composição e estrutura química, dependem também do tamanho das unidades que originam a matéria. Um exemplo? Você já viu ouro vermelho? Já viu ouro verde? Já viu ouro azul? Pois eles existem. Não se trata de ouro tingido, se trata de ouro, do jeitinho que você conhece (para sermos mais rigorosos, contendo exatamente a mesma composição e estrutura química), mas formados por partículas na escala nanométrica. A propriedade (cor) mudou drasticamente somente pelo fato do ouro ser formado por partículas pequeninas, na escala dos nanômetros. Essa constatação revolucionou o conhecimento, lá nos últimos 20 anos do século XX, e criou um novo ramo do conhecimento: a ciência da matéria em escala nanométrica – a Nanociência. E usar os materiais produzidos nessa escala de tamanho (os nanomateriais) para alguma coisa aplicável, ou seja, fazer a tecnologia dos nanomateriais, deu origem à Nanotecnologia. E as clássicas e conhecidas áreas do saber, quando voltadas a usar seu cabedal de conhecimento para estudar aspectos relacionados à Nanociência e Nanotecnologia, ganharam também o prefixo nano em sua descrição. Assim, apareceu a Nanoquímica, a Nanobiologia, a Nanofísica, a Nanoengenharia, a Nanomedicina, a Nanoagricultura, e por aí afora.

Dentre os muitos avanços da Nanociência, destaca-se o desenvolvimento de equipamentos científicos cada vez mais sofisticados, como microscópios extremamente poderosos, que nos permitem enxergar a matéria nessa escala tão diminuta de tamanho. Hoje se consegue facilmente enxergar átomos individuais em uma estrutura química, enxergar ligações químicas, e os intermediários de uma reação. O outro destaque, com o mesmo grau de importância, foi o desenvolvimento de rotas para preparar materiais tão pequenos, que permanecem estáveis para que possam ser usados no dia a dia. O problema é que a natureza não gosta de deixar as coisas assim, pequenas, e a tendência natural e espontânea (conhecida em ciência como termodinâmica) é  que quando a gente prepara qualquer tipo de material, eles cresçam formando partículas muito maiores que as nanométricas. A química, como uma ciência central no conhecimento humano, tem um papel não menos primordial nessa nova realidade, desenvolvendo estratégias de preparação de nanomateriais que conseguem driblar essa tendência natural da termodinâmica, produzindo materiais dos mais diferentes tipos em escala nanométrica. Pronto. Saber fazer e saber enxergar (caracterizar) nanomateriais, os passos iniciais para poder usá-los em dispositivos, sistemas, máquinas, processos, etc.

O impacto da Nanociência e Nanotecnologia nas nossas vidas foi (e vem sendo) enorme. Novos materiais, com propriedades até então inimagináveis, vêm sendo preparados e aplicados nos mais diversos segmentos da vida humana. Não há um único ramo de atividade que não tenha sido profundamente afetado por essa revolução. Produtos com base nanotecnológica vêm invadindo nossas vidas e proporcionando facilidades que seriam inimagináveis há alguns poucos anos atrás – nos últimos anos do século XX, por exemplo. Novos eletrodomésticos, cosméticos, materiais esportivos, eletroeletrônicos, produtos de beleza, novos fármacos e medicamentos, novos produtos na agricultura, novos materiais cirúrgicos, materiais para proteção individual, novos materiais para aplicação no setor automotivo, novos catalisadores para facilitarem a produção de insumos químicos mais baratos e com menor consumo de energia, novas baterias, painéis solares, tintas e materiais para revestimentos e proteção, novos materiais e utensílios para a construção civil, novos materiais para a indústria naval e da aviação, para extração e processamento de petróleo,   enfim, onde há desafio científico e tecnológico, lá está a Nanociência e a Nanotecnologia.

Logicamente que em plena pandemia de COVID-19 não seria diferente. Muitas vacinas que vêm sendo estudadas recentemente lançam mão de algum avanço nanotecnológico em sua concepção, como por exemplo a vacina que vem sendo proposta no Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná, que tem proteínas adsorvidas em nanopartículas de um material polimérico como vetores ativos. Mas além das vacinas, há ações envolvendo a Nanociência e Nanotecnologia em praticamente todas as frentes de trabalho para que se consiga controlar e minimizar os efeitos terríveis que essa pandemia tem causado: nanoestruturas em componentes ativos de novos fármacos para combater o vírus; nanomateriais em novos testes que permitem o diagnóstico da doença em menor tempo, com maior confiabilidade e menor custo (a UFPR e outras Universidades brasileiras têm dado contribuições importantíssimas nessa direção); novos nanomateriais incorporados aos tecidos das máscaras para impedir a chegada do vírus ao sistema respiratório, ou atuando como agentes antivirais que matam o vírus ao entrar em contato; e muitas outras ações.

Como foi dito no início desse texto, foi um fantástico grande mundo das coisas pequenas que se abriu, em um caminho irreversível, sendo mais um importante tijolo na construção do conhecimento que a humanidade vem realizando desde seus primórdios. E o interessante é que a compreensão dos fenômenos que dão origem à Nanociência e Nanotecnologia depende fundamentalmente dos conhecimentos gerados pela mecânica quântica. Uma ligação direta entre os terremotos científicos do início e o fim do século passado.

O advento da Nanociência e Nanotecnologia deu uma nova roupagem ao clássico ditado popular que é nos pequenos frascos que se guardam os grandes perfumes. E desmoronou outro, provando que sim, aqui, tamanho é documento.

 

Prof. Dr. Aldo José Gorgatti Zarbin

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Sal, explosão, desconhecimento químico, tragédia.

Recentemente, ficamos chocados com as impressionantes imagens da enorme explosão (Figura ao lado) ocorrida no dia 04 de agosto na zona portuária da cidade de Beirute no Líbano, que até este momento causou quase 200 mortes, mais de 6 mil feridos e inúmeros desabrigados (A tragédia causou grande comoção mundial, em particular no Brasil, que abriga a maior comunidade libanesa fora daquele país (cerca  de 10 milhões de imigrantes e descendentes).

As imagens da explosão são intrigantes e impressionantes, se é que se pode usar tais adjetivos diante de tamanha tragédia humana. A sequência de explosões no cais do porto, que levou à formação de nuvens brancas em forma de cogumelo, foi incessantemente noticiada por diversas mídias. À “fumaça branca”, como descrita pelos narradores do evento, seguiu-se uma enorme nuvem de cor marrom avermelhada. Essa sequência de fatos deixou-nos, no mínimo, embasbacados e chocados com tamanha manifestação de força das reações químicas envolvidas.

Figura 2. Estrutura química do nitrato de amônio.

Muitas reportagens noticiaram que a explosão foi causada pelo material “nitrato de amônia” ou mesmo “amônia”. Na realidade, de acordo com as informações oficiais, a provável causa da explosão foi a decomposição térmica do sal, denominado nitrato de amônio, que contém o ânion nitrato (NO3) e o cátion amônio (NH4+) – ver figura 2. De acordo com as autoridades libanesas, estavam armazenadas desde 2014 no cais do porto mais de 2800 toneladas deste sal, o que corresponde à extraordinária quantidade de matéria de 35 milhões de mol (saiba mais). Tal tragédia nos deixa curiosos sobre esse sal (nitrato de amônio) e os motivos pelos quais ele parece ser o causador de tanta destruição e da perda de tantas vidas, deixando o país em luto.

O nitrato de amônio

Na natureza, o nitrato de amônio ocorre na forma de um sal duplo de amônio e potássio chamado de Gwihabaita. No entanto, todo o nitrato de amônio consumido no mundo é sintetizado pela reação ácido-base entre ácido nítrico concentrado (HNO3) e gás amônia (NH3), de acordo com a equação química 1:

HNO3(aq) + NH3(g) → NH4NO3(aq)                                                                                                         (1)

São produzidos anualmente cerca de 22 milhões de toneladas de nitrato de amônio. Desse total, 80% são empregados como fertilizante e 20% em explosivos, estes últimos utilizados na mineração ou construção civil. O nitrato de amônio atua como fertilizante devido ao fato de conter na sua fórmula 35% de nitrogênio, elemento essencial presente nas bases nitrogenadas e aminoácidos, constituintes do DNA e proteínas respectivamente,[1]  vitais para o desenvolvimento das plantas.

O sal NH4NO3 forma cristais incolores de brilho lustroso, solúveis em água, não voláteis, não inflamáveis e estáveis à temperatura ambiente.[2] No entanto, é um forte agente oxidante, sendo necessários cuidados no seu manuseio e armazenamento. Em ambiente confinado e na presença de uma fonte de detonação, o NH4NO3 é propenso a explosão. Por esse motivo, já ocorreram diversos acidentes com explosões e incêndios envolvendo este sal (saiba mais).

A 170°C, o NH4NO3 sofre fusão seguida de decomposição.[3] No entanto, a decomposição também pode ocorrer em temperaturas próximas a 50 °C na presença de impurezas como a pirita (dissulfeto de ferro, FeS2),[4] o que eleva o risco de acidentes, mesmo em temperaturas baixas. Os relatos do acidente no porto de Beirute indicaram pequenas explosões, causadas por motivos desconhecidos, que precederam a explosão maior. Essas pequenas explosões podem ter atuado como detonadores que resultaram na grande tragédia.

Do ponto de vista termoquímico, o NH4NO3 decompõe-se inicialmente por uma reação exotérmica (reação que libera energia na forma de calor, representado pelo valor negativo de ΔH), produzindo três mols de espécies químicas na forma gasosa por mol de sal sólido, como mostrado na equação química 2. Estes produtos são o vapor de água e o óxido nitroso (N2O, o gás hilariante que é usado como anestésico):

NH4NO3(s) → N2O(g) + 2 H2O(g)                                                                               (2)

ΔH = 36 kJmol1

Além desta, outras reações de decomposição ocorrem entre 170 oC e 280 oC, liberando rapidamente gases e grande quantidade de calor, representadas pelas equações químicas 3 e 4:

3) NH4NO3(s) →  ½ N2(g) + NO(g) + 2 H2O(g)                                                                        (3)

ΔH = −2597 kJmol-1

NH4NO3(s)  →  ¾ N2(g) + ½ NO2(g) + 2 H2O(g)                                                           (4)

ΔH = −944 kJmol-1

Devido à sequência de reações exotérmicas e consequente liberação de calor, outras reações de decomposição também ocorrem (equações químicas 5 e 6):

2 NH4NO3(s) 2 N2(g) + O2(g) + 4 H2O(g)                                                                (5)

ΔH = −1057 kJmol-1

8 NH4NO3(s) →  5 N2(g) + 4 NO(g) + 2 NO2(g) + 16 H2O(g)                                       (6)

ΔH = −600 kJmol-1

Parte do calor liberado pela sequência de reações exotérmicas (equações químicas 2 a 6) é absorvido pelo processo de decomposição do sal de NH4NO3 fundido, o qual produz vapores de amônia e ácido nítrico. Esse processo endotérmico é representado na equação química 7, na qual se destaca o valor positivo de ΔH.

NH4NO3(l) HNO3(g) + NH3(g)                                                                                (7)

ΔH = 176 kJmol-1

As equações 3, 4 e 6 mostram a formação de dióxido de nitrogênio (NO2) ou de monóxido de nitrogênio (NO). Este último é capaz de formar NO2 pela reação com oxigênio atmosférico. O NO2 é um gás de cor castanha, que provavelmente está associado à enorme nuvem marrom avermelhada visualizada na imagens da explosão em Beirute.

A equação química 5 explica porque o nitrato de amônio é um eficiente fornecedor de oxigênio para reações de combustão. Assim, na presença de materiais combustíveis, a decomposição do nitrato de amônio pode liberar ainda mais calor (

A sequência de reações ilustradas pelas equações químicas 1 a 7 explica como o nitrato de amônio foi capaz de desencadear a grande explosão na cidade de Beirute. Imaginem qual a consequência de todos esses gases, uns incolores (N2O, N2, O2, H2O, NO, HNO3 e NH3), outros coloridos como o NO2, sendo produzidos por reações que liberam grandes quantidades de calor, formando e expandindo a grande nuvem em forma de cogumelo? Estas reações químicas resultaram em um triste espetáculo para aquela cidade! Deve-se considerar também que, além dos danos causados pela explosão, a população provavelmente sofrerá as consequências da liberação desses gases, especialmente o NO2, devido à sua toxicidade, suas propriedades irritantes e à sua tendência de causar chuva ácida.

Do ponto de vista químico, com base nas equações acima expostas, esta foi uma tragédia que talvez pudesse ter sido evitada, caso fossem considerados os conhecimentos científicos que tratam deste sal e dos riscos associados à sua instabilidade térmica e potencial capacidade explosiva.

 

Referências

[1] G. Garcia, A. A. Cardoso, O. A. M. Santos, Da escassez ao estresse do planeta: um século de mudanças no ciclo do nitrogênio, Quim. Nova, 36(9) (2013) 1468-1476 (https://www.scielo.br/pdf/qn/v36n9/32.pdf).

[2] G. Marlair, M.-A. Kordek, Safety and security issues relating to low capacity storage of AN-based fertilizers, J. Hazard. Mater. 123(1–3) (2005) 13-28 (https://doi.org/10.1016/j.jhazmat.2005.03.028).

[3] A. M. Djerdjev, P. Priyananda, J. Gore, J. K. Beattie, C.  Neto, B. S. Hawkett, The mechanism of the spontaneous detonation of ammonium nitrate in reactive grounds, J. Environmental Chem. Eng. 6(1) (2018) 281-288 (https://doi.org/10.1016/j.jece.2017.12.003)

[4] R. Gunawan, D. Zhang, Thermal stability and kinetics of decomposition of ammonium nitrate in the presence of pyrite, J. Hazard. Mater. 165 (2009) 751–758 (https://doi.org/10.1016/j.jhazmat.2008.10.054)

 

Por Profa. Dra. Shirley Nakagaki

http://lattes.cnpq.br/2297060247169449

PLÁSTICOS – O QUE FAZER COM ELES NA PANDEMIA?

Durante a pandemia da COVID-19, muitos protocolos foram adotados por profissionais de saúde e recomendados a toda a população para prevenir a contaminação pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Nesse contexto, os plásticos têm uma participação muito importante, pois estão presentes nos protetores faciais, nas máscaras descartáveis e nas vestimentas dos profissionais de saúde. Eles têm também presença constante nas nossas bolsas, protegendo as máscaras limpas e separando as usadas. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)1, o novo coronavírus permanece ativo em superfícies plásticas por até 72 horas. Ainda, pesquisas revelam um grande aumento na presença de resíduos plásticos no lixo orgânico, pois, durante a pandemia, a população aumentou o uso de polímeros sintéticos de uma forma geral e, por medo da contaminação, tem descartado de forma indiscriminada todo tipo de embalagens.

Passamos a utilizar, com ainda mais freqüência, embalagens descartáveis de diferentes tipos de plástico, como sacos e sacolas usados nas compras do mercado. Mas isso tudo não precisa virar lixo, muito menos ser descartado no lixo orgânico. Mais do que nunca precisamos praticar as saudáveis regras dos cinco R (Reutilizar, Reciclar, Repensar, Reduzir, Remover).

A higienização de todos os tipos de utensílios plásticos, incluindo sacos e sacolas, é muito simples, prática e segura, e pode permitir a reutilização desses artefatos com economia para o seu bolso e proteção para a natureza. Os sacos usados para embalar suas máscaras de tecido, assim como as sacolas oferecidas no mercado, podem ser descontaminados com água e sabão ou com água sanitária (solução de hipoclorito de sódio, disponível no mercado, na proporção de 25 mL (1/2 copinho de café) de água sanitária para cada litro de água)2,3. Em um balde, uma bacia, ou outro recipiente, você pode facilmente preparar uma mistura de água com sabão (sabão em pó ou sabão líquido, como se você fosse lavar uma peça de roupa) e nela colocar de molho as sacolas e os sacos plásticos que você trouxe do comércio. Deixe de molho por uns 30 minutos, enxágue com água corrente e coloque para secar pendurado no varal, como você faria com uma peça de roupa. Se escolher usar água sanitária tenha cuidado redobrado, pois ela é um alvejante (um oxidante) e pode manchar tecidos e materiais coloridos que entrarem em contato com o líquido de lavagem.

Imagem 2: Fonte: Hellena César.

 

Esse procedimento é indicado para a higienização de todo e qualquer artefato de plástico (incluindo sacos, sacolas, isopor e outras embalagens). Depois desse tratamento, as sacolas, por exemplo, podem ser reutilizadas para embalar o que você desejar, incluindo o lixo orgânico da sua casa. Até mesmo aquelas que apresentarem qualquer furo ou rasgo podem ser usadas nas lixeiras dos banheiros ou para organizar o lixo reciclável.

Essa atitude simples pode gerar uma boa economia para o seu bolso (e para o meio ambiente), pois os sacos plásticos que você compra para embalar o lixo são feitos de um polímero que não é biodegradável, enquanto as sacolas oferecidas na maioria dos mercados para embalar as suas compras são biodegradáveis.

Você deve ter percebido que o procedimento indicado aqui é o mesmo recomendado pelos Órgãos de Saúde para a higienização das máscaras “caseiras” que passamos a utilizar todos os dias. Sendo assim, quando você chegar em casa e for higienizar a sua máscara, coloque junto dela o saco plástico que você usou para guardá-la, e, assim como você reutiliza sua máscara caseira, reutilize também a embalagem. Ela pode ser higienizada indefinidamente enquanto estiver fisicamente intacta (sem rasgos ou furos).

Então, não jogue fora os sacos e as embalagens plásticas. Reuse, recicle!!! A natureza e as gerações futuras agradecerão.

Referências:

1) https://portal.fiocruz.br/pergunta/quanto-tempo-o-coronavirus-permanece-ativo-em-diferentes-superficies

2) http://crq3.org.br/wp-content/uploads/2020/05/informativo-crq3-covid-19-1.pdf

3) http://cfq.org.br/noticia/solucao-diluida-de-agua-sanitaria-e-alternativa-na-falta-de-alcool-gel-ou-mesmo-de-agua-e-sabao/

Autoria: Profa. Maria Aparecida Ferreira César-Oliveira

Currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/6861108334530738

Grupos de Pesquisa http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/18

21936002687883

Como é feita a produção de álcool 70% em gel?

A produção de álcool em gel está em alta no mundo. Em função da pandemia da COVID-19, esta é uma das formas de prevenção da infecção gerada pelo vírus SARS-CoV-2. Entretanto, há vários detalhes que devem ser conhecidos antes de se preparar álcool em gel e, como veremos neste texto, esta produção deve ser feita sob a supervisão de um responsável técnico.

Primeiramente, há uma confusão generalizada sobre o grau alcoólico ou título alcoométrico. Qual é a unidade de concentração, ºGL ou ºINPM, a ser usada? O símbolo ºGL é a sigla de “Gay-Lussac”, e está associado à porcentagem em volume (v/v), ou seja, o volume de etanol puro em 100 mL de mistura aquosa disponível no comércio. Já INPM é a sigla de Instituto Nacional de Pesos e Medidas. A unidade INPM relaciona-se à % em massa (m/m), ou seja, corresponde à massa de etanol puro em 100 g de mistura hidroalcoólica.

A porcentagem em volume recomendada para o álcool líquido ou em gel usado como antisséptico é de 77% (v/v) ou 77 ºGL. Já a porcentagem INPM (ou m/m) é de 70%. Há, portanto, uma grande diferença no título (porcentagem) em massa ou volume. Em vista desta diferença, é muito comum que produtos com concentração de etanol inferior à recomendada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sejam disponibilizados comercialmente.

Para a produção do álcool em gel, além do etanol deve-se utilizar como excipientes (veículos para o princípio ativo) água, espessante e, facultativamente, peróxido de hidrogênio e glicerol como aditivos. A água deve ser purificada por processos de osmose reversa, destilação ou deionização, atendendo assim um critério de qualidade mínima. O etanol utilizado deve seguir as características do Formulário Nacional[1] em termos de composição química e limite de contaminantes como benzeno, acetaldeído e metanol. Ressalta-se que o álcool combustível anidro não deve ser utilizado para a produção de álcool em gel, pois contém, além de corantes, aditivos como os desnaturantes (substâncias que alteram o sabor para torná-lo desagradável ao paladar), entre os quais estão o metanol, o acetaldeído, o benzoato de denatônio e a gasolina. Todos estes contaminantes tornam o álcool combustível um produto impróprio para o uso em bebidas e extremamente danoso quando em contato com a pele.

O etanol utilizado como insumo para a produção de álcool em gel deve ter o seu grau alcoólico determinado utilizando-se um alcoômetro de Gay-Lussac, em uma temperatura conhecida. Segundo a Farmacopeia Brasileira,[2] a porcentagem de etanol (v/v) deve ser medida na temperatura de 15 ºC. Quando a medição não ocorre a 15 ºC, o valor deve ser convertido à temperatura de referência utilizando-se a Tábua da Força Real dos Líquidos Espirituosos da Farmacopeia Brasileira.[2]

Uma vez determinado o título alcoométrico a 15ºC, procede-se à diluição do etanol com água purificada. A glicerina é adicionada à fase alcoólica, antes da mistura com água. A concentração de glicerina nas formulações é de até 2% (v/v), e a concentração sugerida pela Farmacopeia Brasileira é de 1,45% (v/v). É possível também adicionar peróxido de hidrogênio à fase etanólica para atingir a concentração final de 0,125% (v/v). Tanto o glicerol como o peróxido de hidrogênio não são obrigatórios; entretanto, o glicerol funciona como um bom umectante, reduzindo o ressecamento da pele, enquanto o peróxido de hidrogênio atua como desinfetante e esterilizante.

Para que se obtenha a consistência de gel, há dois grupos de agentes espessantes usualmente empregados. Os mais utilizados são os polímeros acrílicos, dos quais o Carbopol® é o mais conhecido, e os polímeros derivados de celulose, como a hidroxietilcelulose (HEC) e, mais recentemente, a hidroxipropilmetilcelulose (HPMC). No caso dos espessantes acrílicos, são utilizadas concentrações de 0,5 a 12% (m/m), dependendo do fabricante. O polímero acrílico é adicionado à água com agitação e, posteriormente, adiciona-se o etanol contendo glicerol e peróxido de hidrogênio, quando desejável. As soluções assim obtidas devem então ser neutralizadas (com trietanolamina ou solução aquosa de NaOH). Isso induz o inchamento do polímero, com a consequente formação de um gel transparente.

Já os derivados de celulose são menos afetados pelo pH e são usados em concentrações de 0,5 a 1,0% (m/m). Neste caso, os polímeros são dispersos em uma pequena fração do etanol, depois em água, e depois se adiciona o restante do álcool, juntamente com os demais excipientes.

As formulações finais do álcool em gel devem apresentar valores de pH entre 5 e 7, e uma viscosidade superior a 8.000 mPa⋅s, medida a 20 rpm, segundo as determinações da ANVISA. Assim, fica evidente que o produto, álcool em gel, apesar de ser produzido em etapas simples – diluição e mistura – pode apresentar variações de qualidade no que tange à concentração final (se 70% m/m ou 70% v/v), ou ao número de fases presentes na mistura, devido à incapacidade de dispersão adequada dos polímeros. Assim, a existência de produtos comerciais fora de especificação, tanto em termos de concentração quanto de viscosidade, não é incomum.

Ressalta-se que a produção de álcool em gel requer que um profissional qualificado (químico, farmacêutico ou engenheiro químico) assuma a responsabilidade técnica. Este profissional é o encarregado de supervisionar o processo de produção e de atestar a qualidade e adequação do procedimento, atendendo os critérios de qualidade exigidos pela ANVISA e pela sociedade.

Vídeo: Dispersão da solução de etanol 70%. (Melhor visualizado em tela inteira.)

Referências:

[1] Formulário Nacional da Farmacopeia Brasileira: http://portal.anvisa.gov.br/documents/33832/259372/FNFB+2_Revisao_2_COFAR_setembro_2012_atual.pdf/20eb2969-57a9-46e2-8c3b-6d79dccf0741. Acessado em 27 de julho de 2020.

[2] Farmacopeia Brasileira, 6ª edição, publicada em agosto de 2019:
http://portal.anvisa.gov.br/farmacopeia-brasileira

Pelo Prof. Dr. Rilton Alves de Freitas
http://lattes.cnpq.br/2295510206948339

Fotos: Algumas etapas de fabricação do álcool 70% em gel.

Compostos antirretrovirais no combate à AIDS e à COVID-19

Em junho de 1981, nos Estados Unidos, cinco jovens foram diagnosticados com uma infecção pulmonar rara. O que chamou a atenção do mundo foi o fato de todos eles serem considerados saudáveis e, naquele momento, portadores de uma infecção comum em idosos. Foram os primeiros relatos das complicações decorrentes de uma doença que viria a ser conhecida como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Nos anos seguintes, o que se viu foi uma corrida na busca de diagnóstico e tratamento de portadores do HIV no mundo todo.

Os vírus são agentes infecciosos invasivos que têm como material genético DNA (adenovírus) ou RNA (retrovírus). Um ou outro, nunca os dois. Os adenovírus causam doenças como influenza e herpes, enquanto os retrovírus estão envolvidos em doenças como a AIDS e a COVID-19. Por serem estrutural e funcionalmente simples, os vírus precisam utilizar a maquinaria bioquímica de uma célula hospedeira para se multiplicarem, num processo chamado de replicação. Esse processo pode ser resumido nas seguintes etapas:

  1. Uma vez no organismo humano, o vírus precisa invadir as células e, para isso, ocorre uma interação entre duas proteínas: uma glicoproteína viral e uma proteína humana, esta última chamada de CCR5, que se localiza nos receptores de células T.
  2. Depois disso, uma proteína do vírus dá início à fusão com a membrana da célula que será invadida.
  3. Quando o vírus enfim entra na célula, ocorre a liberação do RNA viral no citoplasma. Esse RNA será transcrito para gerar DNA pela ação de uma enzima viral chamada transcriptase reversa. Essa etapa define a classe do vírus como retrovírus, por produzir DNA a partir de RNA, o que é o contrário (retro) do comumente observado nas células.
  4. Na sequência, o DNA viral é incorporado ao genoma do hospedeiro em um processo mediado por outra enzima viral, a integrase.
  5. A partir desta etapa, a maquinaria bioquímica da célula infectada passará a sintetizar RNA viral. Além disso, as enzimas (transcriptase reversa, integrase, proteases) e poliproteínas serão quebradas em estruturas menores, por proteases virais, para formar a estrutura de um novo vírus.
  6. No final do processo, novos envelopes virais com material genético, enzimas e demais proteínas serão expelidos da célula (ou seja, a célula invadida terá fabricado outras cópias do vírus) para iniciar o processo de invasão e replicação em outros hospedeiros.

Figura: Etapas do ciclo de invasão de uma célula humana por um retrovírus, e os possíveis alvos biológicos para o tratamento da AIDS

Fonte: mestranda Tay Zugman

Uma das alternativas para o combate aos retrovírus, como o HIV, é o uso de compostos antirretrovirais, cuja ação é voltada para a interrupção de uma, ou mais do que uma, das etapas citadas acima. As principais classes de retrovirais são:

INIBIDORES DE FUSÃO (IF)

São compostos que atuam na glicoproteína viral, mudando a sua estrutura e impedindo o seu reconhecimento pelos receptores das células humanas. Em consequência disso, a etapa de fusão e a entrada do vírus na célula não ocorrem. Exemplo: Enfuvirtida.

INIBIDORES DO RECEPTOR DE CCR5 (IC)

Atuam no receptor da célula humana. O composto se liga ao receptor CCR5, ocupando o “lugar” em que o vírus se ligaria. Dessa forma, a interação vírus-célula não ocorre, o que impede a infecção. Exemplo: Maraviroque.

INIBIDORES DE TRANSCRIPTASE REVERSA (ITR)

Esses inibidores agem sobre as transcriptases reversas, enzimas que produzem DNA complementar a partir da transcrição do RNA. Em consequência desta ação, a replicação do vírus não ocorre. Essa classe é subdividida em Inibidores de Transcriptase Reversa Nucleosídicos (ITRN) e Inibidores de Transcriptase Reversa Nucleosídicos (ITRNN). Exemplos: ITRNZidovudina (AZT); Lamivudina (3TC); Abacavir; Tenofovir (TDF); Didanosina. ITRNN: Efavirenz (EFV); Nevirapina (NVP).

INIBIDORES DE INTEGRASES (II)

Agem sobre a enzima que faz a incorporação do DNA viral ao humano, impedindo a replicação da informação genética do vírus pela célula infectada. Exemplos: Raltegravir; Elvitegravir.

INIBIDORES DE PROTEASES (IP)

Inibem as proteases virais que agem sobre as poliproteínas, evitando a produção de novos vírus. Exemplos: Ritonavir, Lopinavir, Atazanavir.

 

Mais recentemente outro retrovírus tem assolado o mundo, causando a pandemia da COVID-19 (coronavirus disease 2019). Neste contexto, o novo coronavírus SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) tornou-se alvo de pesquisa em uma nova corrida para o desenvolvimento de testes diagnósticos e, principalmente, o tratamento da doença. O vírus não escolhe seus hospedeiros, e a prevenção é uma responsabilidade de todos. As soluções, por outro lado, serão produzidas por cientistas das áreas da saúde, biologia e química em um trabalho colaborativo cujo sucesso será convertido no bem de todos. É por isso que os investimentos em ciência e tecnologia são imprescindíveis.

Saiba mais:

https://www.thebodypro.com/article/the-evolution-of-antiretroviral-therapy-past-prese

https://www.avert.org/professionals/history-hiv-aids/overview

https://www.webmd.com/hiv-aids/hiv-treatment-history

http://www.sbac.org.br/blog/2020/03/30/diagnostico-laboratorial-do-coronavirus-sars-cov-2-causador-da-covid-19/

 

Texto pelo Prof. Dr. Leandro Piovan

Departamento de Química da UFPR

http://lattes.cnpq.br/7970123473558508

 

 

Ilustração pela Mestranda Tay Zugman – Programa de Pós-Graduação em Química da UFPR

 

Ciência e indústria: aliança perfeita para o desenvolvimento de revestimentos antivirais

Foto: Novo Coronavirus SARS-CoV-2 – Imagem de microscopia eletrônica de transmissão de partícula viral isolada de um paciente. Imagem original do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas do Governo dos USA.

O contágio pela COVID-19 muitas vezes se dá através de pequenas gotículas provenientes do nariz ou da boca da pessoa infectada, que, após uma tosse ou espirro, ou mesmo durante a fala, se depositam em superfícies e se tornam um perigo para todos ao seu redor. Hoje, quatro meses depois que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia da COVID-19, esta informação está bastante difundida.

E se as próprias superfícies possuíssem a capacidade de inativar o vírus? Pensando em soluções para diminuir a taxa de transmissão do novo coronavírus SARS-CoV-2 e, consequentemente, esta forma de contágio, o Instituto Senai de Inovação em Eletroquímica está apoiando indústrias brasileiras no desenvolvimento de revestimentos antivirais. Dois revestimentos estão sendo desenvolvidos em períodos muito curtos de tempo quando se considera que dependem de pesquisa científica e inovação, mas que são períodos cruciais quando procura respostas para situações complexas, de crise, como a que estamos vivendo.

Um deles será um revestimento antiviral de fácil manuseio e aplicação por spray, sem que haja a necessidade de um preparo prévio da superfície. Com estas características, ele poderá ser usado em superfícies como maçanetas, mesas e bancadas, balcões de atendimento, corrimões de escadas e corredores, entre outras. Para a obtenção da formulação adequada, estão sendo utilizadas diferentes tecnologias para a ancoragem de nanopartículas de prata, que são as protagonistas destas “superfícies antivirais”. Deve-se observar que as bases poliméricas formadoras dos filmes de recobrimento precisam conferir característica não tóxica ao revestimento funcional, bem como apresentar resistência à abrasão. O resultado destes estudos será entregue à indústria até o final de novembro de 2020, totalizando seis meses de desenvolvimento.

O segundo projeto é de um revestimento antiviral imobiliário, que pode ser utilizado em paredes de ambientes hospitalares ou locais com grande circulação de pessoas. A tinta imobiliária de alta performance, já comercializada pela empresa paranaense envolvida, ganhará funcionalidade antiviral por meio da incorporação de nanopartículas de cobre e de prata. O desafio está em definir a concentração ideal dos aditivos, para que haja compatibilidade química e estabilidade da suspensão de nanopartículas na tinta, de forma a não interferir nas propriedades originais do produto. Este projeto está em fase final e será entregue à empresa até o final de setembro, totalizando quatro meses de desenvolvimento.

Ambas as tecnologias atuam pelo mecanismo, ainda não completamente elucidado para a classe viral de micro-organismos, de inativação do SARS-CoV-2 pela interação com a proteína S do envelope viral, fazendo com que o sítio desta proteína que faria a ligação com as células humanas esteja ocupado e inativo.

Estes projetos são exemplos claros de que a inovação é essencial para fomentar a atividade econômica industrial nacional, gerando renda e empregos, de forma responsável, protegendo ao mesmo tempo a saúde e o bem estar das pessoas. Desta forma, incorporar funcionalidade antiviral a tintas e revestimentos torna mais eficiente a principal estratégia de combate à COVID-19, que é reduzir o número de pessoas infectadas em um curto espaço de tempo.

Com infraestrutura laboratorial e de recursos humanos altamente capacitados, o Instituto Senai de Inovação em Eletroquímica realiza pesquisa aplicada à indústria. Neste contexto, ele desenvolve produtos e processos inovadores, resultando em maior competitividade e sustentabilidade para diversos segmentos industriais, os quais podem ir da geração e do armazenamento de energia à produção de revestimentos inteligentes e à caracterização, monitoramento e controle da corrosão, passando pelo diagnóstico rápido de doenças e o monitoramento de bioprocessos. Atualmente somos uma unidade credenciada pela Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), o que está relacionado a uma alta qualidade de serviços, pesquisas e infraestrutura, e a um corpo técnico especializado e apto a atender as necessidades da indústria, com acesso a recursos financeiros que viabilizam os desenvolvimentos.

Pela Dra. Agne Roani de Carvalho Jorge (http://lattes.cnpq.br/3323584335424117)

Pesquisadora do Instituto Senai de Inovação em Eletroquímica

Responsável técnica pela área de Revestimentos Inteligentes

 

Legenda da foto: Novo Coronavirus SARS-CoV-2 – Imagem de microscopia eletrônica de transmissão de partícula viral isolada de um paciente. Imagem original do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas do Governo dos USA.

A importância das unidades de concentração durante a pandemia.

Em tempos de pandemia, é comum nos depararmos com uma série de informações pouco observadas no nosso dia a dia. Um exemplo bem claro disso são as diversas formas com que produtos contendo etanol (popularmente conhecido como álcool etílico) têm sido comercializados, seja na forma em gel ou mesmo na forma líquida. Antes da presença da COVID-19 em nossas vidas, apenas as formulações destinadas à limpeza doméstica eram vendidas. Estes produtos não são eficazes no combate ao coronavírus, pois a quantidade de etanol está abaixo da necessária para que o vírus seja inativado. Mas como saber qual produto comprar? Para responder a esta pergunta, devemos atentar para qual é a concentração de etanol em uma mistura hidroalcoólica.

A concentração de uma solução pode ser definida como a proporção entre as quantidades de soluto (etanol no nosso caso) e de solvente (frequentemente água). Esta proporção pode ser expressa de diferentes formas de acordo com as grandezas que conseguimos medir, como, por exemplo, massa, volume ou quantidade de matéria, sendo esta última mais adotada em estudos técnicos. Para cada tipo de relação que estabelecemos, definimos então a unidade de concentração. Uma unidade bem comum para as soluções de etanol é a porcentagem em massa, ou seja, a relação em massa entre o etanol e o solvente, também conhecido como grau INPM (Instituto Nacional de Pesos e Medidas). Então, quando nos referimos ao famoso “álcool 70”, este sim eficiente no combate ao coronavírus, estamos dizendo que, para cada 100 gramas desta solução, 70 gramas são de etanol ou, tecnicamente falando, temos uma solução de etanol 70 °INPM ou 70% em massa.

Apesar da concentração em massa ser a mais comum, outra forma bastante recorrente de se expressar a concentração de etanol em soluções hidroalcoólicas é a relação de volume. Essa unidade de medida é conhecida como “graus GL ou °GL” (a sigla GL significa Gay-Lussac – em homenagem ao físico e químico francês Louis Joseph Gay-Lussac). Nesse caso, o “álcool 70” (70° INPM) deveria ser chamado de “álcool 77”, o que na prática significa que uma solução 77 °GL contém 77 partes de etanol para cada 100 partes em volume da solução (Ex: 77 mL de etanol para cada 100 mL de solução). A relação em volume difere um pouquinho da relação em massa, por conta da contração de volume causada pela interação química entre etanol e água, além da diferença de densidade entre os dois líquidos.

Além destas unidades de concentração, outras podem aparecer nas prateleiras do supermercado, seja para o etanol ou mesmo para outros tipos de produto. É o caso de outro desinfetante bastante utilizado no combate ao coronavírus, a “cândida” ou água sanitária. Embora o princípio ativo destas soluções seja o hipoclorito de sódio (NaClO), sua forma mais comum de comercialização é como uma solução aquosa com concentração entre 2,0 e 2,5% em massa de cloro ativo (Cl2). A quantidade de cloro ativo é calculada a partir do seu equivalente em hipoclorito; é feito dessa forma para permitir a comparação entre o poder oxidante de vários compostos clorados. As semirreações de redução, tanto para o NaClO­­ como para o Cl2, envolvem o consumo de dois elétrons e, portanto, a equivalência entre os dois compostos é igual a 1 (neste caso, 1 mol de ClO equivale a 1 mol de Cl2). Assim, considerando a relação em massa para a mesma quantidade de matéria dos dois compostos, uma solução 2,0% em massa de cloro ativo tem em sua composição 2,1 gramas de NaClO (o equivalente a 2,0 gramas de Cl2) para cada 100 gramas da solução. Vale reforçar, neste caso, que a solução comercial deve ser diluída para ser usada na desinfecção de alimentos ou ambientes. Quando utilizada na desinfecção de água potável, por exemplo, a concentração de cloro ativo deve ser da ordem de 0,0002% em massa, ou seja, entre 10.000 e 12.500 vezes menor do que seu teor na água sanitária.

Independentemente do desinfetante escolhido, o importante é nos protegermos. Portanto, pegue seu “álcool 70”, sua água sanitária e saia desinfetando tudo. Vamos todos combater o coronavírus!

Por Prof. Dr. Luiz Humberto Marcolino Junior

http://lattes.cnpq.br/0495683068319877